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Дом семи женщин(на португальском), автор-Летиссия Верцховски (сериал)

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Аннотация:
Действие разворачивается вокруг семьи Бенту Гонсалвеша. Он женат на уругвайке Каэтане. Его семейные отношения служат предметом восхищения для друзей и предметом зависти для врагов. Но полковнику приходится расстаться со своей семьей и идти воевать. Свою семью он отправляет к своей сестре Ане Жоакине, подальше от театра военных действий. Туда едет его жена Каэтана со старшей дочерью и младшими сыновьями, младшая сестра Бенту Мария и три ее молодые и красивые дочери: Росарио, Мануэла и Мариана. В этом месте, где все эти женщины нашли приют, их ждет боль и радость, одиночество и любовь, здесь они переживут горести войны. Там они будут ждать своих мужчин, которые уже вошли в их жизнь и встречи, которые случатся в будущем. Они переживут горести разлук и счастье маленьких моментов радости. Им придется тяжело работать в поле, растить скот, хранить домашний очаг и защищать свой дом. Молиться, плакать и хоронить своих мертвых. Они будут долгими месяцами дожидаться новостей и писем.

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Cadernos de Manuela

O ano de 1835 não prometia trazer em seu rastro luminoso de co-meta todos os sortilégios, amores e desgraças que nos trouxe. Quando a décima segunda badalada do relógio da sala de nossa casa soou, cor-tando a noite fresca e estrelada como uma faca que penetra na carne tenra e macia de um animalzinho indefeso, nada no mundo pareceu se travestir de outra cor ou essência, nem os móveis da casa perderam seus contornos rígidos e pesados, nem meu pai soube dizer mais pala¬vras do que as que sempre dizia, do seu lugar à cabeceira da mesa, olhando-nos a todos nós com seus negros olhos profundos que hoje já perderam há muito o seu viço, a sua luz e a sua existência de olhos de homem do pampa gaúcho que sabiam medir a sede da terra e a chuva escondida nas nuvens. Quando o relógio cessou de soar o seu grito, a voz de meu pai se fez ouvir: "Que Deus abençoe este novo ano que a vida nos traz, e que nesta casa não falte saúde, alimento ou fé." Todos nós respondemos: "Amém", erguendo bem alto nossos copos, e nisso não houve ainda nada que pudesse alterar o curso dos acontecimentos que nos regiam tão dolentemente os dias naquele tempo. Minha mãe, em seu vestido de rendas, os cabelos presos na nuca, bonita e correta como era sempre, começou a servir a família com os quitutes da ceia, sendo seguida de perto pelas criadas, e poucos segundos depois, quando do relógio não mais se ouvia um suspiro ou lamento, tudo em nossa casa recobrou a antiga e inabalável ordem. Risos e ponches. A mesa iluminada por ricos candelabros estava farta e repleta da família: mi¬nhas duas irmãs, Antônio, meu irmão mais velho, o pai, a mãe, D. Ana, minha tia, acompanhada de seu marido e dos dois filhos barulhentos e alegres, meu tio, Bento Gonçalves, sua mulher de lindos olhos verdes, Caetana, a prima Perpétua e meus três primos mais velhos, Bento Fi¬lho, Caetano e, à minha frente, olhando-me de soslaio de quando em quando, com os mesmos pequenos olhos ardentes do pai, Joaquim, a quem eu fora prometida ainda menina, e cuja proximidade me causa¬va um leve tremor nas mãos, tremor este que eu conseguia disfarçar com galhardia, ao segurar os pesados talheres de prata que minha mãe usava nos dias de festa. Os filhos pequenos de meu tio Bento e de sua esposa estavam lá para dentro, com as negras e as amas, decerto que já dormiam, pois essas coisas de esperar o Ano não eram lá para os que ainda usavam fraldas.
Foi exatamente assim que o ano de 1835 veio pousar entre nós. Havia no ar, fazia já algum tempo, um leve murmúrio de insatisfação, umas queixas contra o Regente, umas reuniões misteriosas que ora sucediam-se no escritório de meu pai, muito escusas, ora arrancavam-no de nossa casa por longas tardes e madrugadas. Porém, como disse, naquela noite tenra e tépida de princípios de janeiro, nenhum dos pre-sentes àquela mesa parecia carregar qualquer sombra que lhe turvas¬se os olhos. Joaquim, vindo do Rio, juntamente com os irmãos, para rever a família, deitava-me longos olhares, como a dizer que eu não me esquecesse que era sua, que o tempo por ele passado para as bandas da Capital fora bom para comigo: eu via em suas retinas negras um brilho de satisfação — a prima que lhe cabia era bela, a vida era bela, éramos todos jovens, e o Rio Grande era uma terra rica, terra da qual nossas famílias eram senhoras. Distante de mim, tio Bento e meu pai riam e bebiam à solta, homenzarrões de vozes trovejantes, de alma lar¬ga. As mulheres ocupavam-se com seus assuntos menores, seus anseios, não reles em tamanho, pois dessa delicada fímbria feminina é que são feitas as famílias e, por conseguinte, a vida; falavam dos filhos, do ca¬lor do verão, dos partos recentes; tinham um olho posto nas conversas, os risos doces, a alegria; porém, com o outro fitavam seus homens: tudo o que lhes faltasse, de comer ou de beber, do corpo ou da alma, eram elas que proviam.
Assim seguia a noite, estrelada e calma. A prima Perpétua e minhas irmãs não se cansavam de falar em bailes, em passeios de charrete, em moços de Pelotas e de Porto Alegre. Vieram os doces dar vez às car¬nes, a ambrosia brilhava feito ouro em seu recipiente de cristal, a comilança seguia seu ritmo e seu passo, o ponche era bebido aos sorvos para espantar o calor das conversas e dos anseios. O ano de 1835 estava entre nós como uma alma, a barra de suas saias alvas acarinhava minha face como um sopro; 1835 com suas promessas e com todo o medo e a angústia de seus dias ainda sendo feitos na oficina da vida. Nenhum dos que ali estavam sequer viu o seu vulto ou ouviu sua voz de mistérios, abafada constantemente pelo ruídos dos talheres e pelos risos. Só eu, sentada em minha cadeira, ereta, mais silenciosa do que de costume, somente eu, a mais moça das mulheres daquela mesa, pude ver um pouco do que nos aguardava. A minha frente, Joaquim sorria, contava um caso do Rio de Janeiro com sua voz alegre de moço. Sob a névoa dos meus olhos, eu mal podia percebê-lo. Via, isso sim, agar¬rado ao mastro de um navio, um outro homem, mais velho, de cabelos muito loiros, não negros como os de meu primo, de olhos doces. E via as ondas, a água salgada comprimia minha garganta, afogando-me de susto. E via sangue, um mar de sangue, e o minuano começou então a soprar somente para os meus ouvidos. O vulto do novo ano, pálido e feminil, estendeu então sua mão de longos dedos. Pude ouvi-lo dizen¬do que eu fosse para a varanda, ver o céu.
— Está tão quieta, Manuela — a voz de minha irmã Rosário le¬vou embora de meus ouvidos o sopro cruel do vento de inverno.
— Não é nada — disse eu, sorrindo um riso débil.
E saí da mesa, fazendo uma mesura discreta, à qual Joaquim retri-buiu com um largo sorriso que, de tão puro, me trouxe lágrimas aos olhos. Deslizei então para a varanda, donde podia ver a noite calma, o céu estrelado e límpido que se abria sobre tudo, campo e casa, derramando no mundo uma luz mortiça e lunar. De onde estava, podia ain¬da ouvir o vozerio de todos lá dentro, e mais ainda seus risos alegres, as frases soltas e despreocupadas, não se falava em gado nem charque, pois era noite de festa. Como não percebem?, foi o que pensei com toda a força da minha alma. E, no entanto, o campo à minha frente, úmido de orvalho e florido aqui e ali, parecia ser o mesmo de todos os meus anos. E foi então que vi, para as bandas do oriente, a estrela que descia num rastro de fogo vermelho. E não era o boitatá que vinha buscar meus olhos arregalados, era sangue, sangue morno e vivo que tingia o céu do Rio Grande, sangue espesso e jovem de sonhos e de coragem. Um gosto amargo inundou minha boca e tive medo de morrer ali, pos¬tada naquela varanda, aos primeiros minutos do novo ano.
Dentro da casa, a festa prosseguia, alegre. Eram quinze pessoas em torno da mesa posta, e nenhuma delas viu o que eu vi. Foi por isso que, desde essa primeira noite, eu já sabia de tudo. A estrela de sangue confidenciou-me este terrível segredo. 1835 abria suas asas, ai de nós, ai do Rio Grande. E eu, fadada a tanto amor e a tanto sofrimento. Mas a vida tinha lá seus mistérios e suas surpresas: nenhum de nós naquela casa voltaria a ser o mesmo de antes, nem os risos nunca mais soariam tão leves e límpidos, nunca mais aquelas vozes todas reunidas na mes-ma sala, nunca mais.
"Do mesmo sonho que se vivia, também se podia morrer", ocor¬reu-me isto naquela noite, num susto, como um pássaro negro que pousa numa janela, trazendo sua inocência e seus agouros. Muitas outras vezes, nos longos anos que se seguiram, tive oportunidade de me recordar dessa estranha frase que ouvi outra vez, algum tempo mais tarde, na voz adorada de meu Giuseppe, e que repetia o que eu mesma já tinha dito ao ver uma fresta do futuro... Talvez tenha sido exatamente nessa noite que tudo começou.
Manuela.

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3

1835
A Estância da Barra era de propriedade de D. Ana Joaquina da Silva Santos e do seu esposo, o senhor Paulo, que na noite de dezoito de setembro de 1835 reunira-se, juntamente com seus dois filhos, Pedro e José, às tropas do coronel Bento Gonçalves da Silva. A Estância da Barra ficava na ribeira do Arroio Grande, às margens do Camaquã, a doze léguas da Estância do Brejo, esta de propriedade de D. Antônia, irmã mais velha de Bento e D. Ana. A Estância do Brejo também situava-se às margens do Rio Camaquã e possuía um imenso laranjal, famoso entre todas as crianças da família Silva.
Na manhã do dia dezenove de setembro daquele ano, sob um céu tão azul e plácido onde, ora aqui, ora ali, finíssimas nuvens de renda branca repousavam, isto formando um conjunto tão delicado quanto o de uma rica toalha de mesa bordada por hábeis dedos e estendida so¬bre tudo, arvoredo, rios, açudes, bois e casario, a Estância da Barra estava em polvorosa. Naquela mesma tarde, chegariam para longa es¬tada as sete mulheres da família, carregadas com suas mui extensas bagagens, com as suas negras de confiança, criadas e amas-de-leite, pois junto vinham, em alegre confusão, os quatro filhos pequenos de Bento Gonçalves e Caetana, sendo que Ana Joaquina, a mais pequenina de todos, estava para completar seu primeiro ano por aqueles dias, e ain¬da mamava na teta da negra Xica.
Na manhã daquele dia, D. Antônia, tendo recebido por um pró-prio a notícia da chegada de suas parentas, e tendo tomado também conhecimento dos intentos de seu mui amado e estimado irmão, que marchava para tomar a cidade de Porto Alegre, acordou mais cedo do que de costume e foi até a estância vizinha dar as ordens necessárias a D. Rosa, a caseira, e mandar que se fizesse de um tudo de comer e de beber, pois decerto que Ana, Maria Manuela e Caetana, mais as qua¬tro moças e os pequenos, vindos de viagem desde Pelotas, tirante as angústias que por certo lhes açoitavam as almas, haveriam de chegar à casa varados de fome, até porque os moços e as crianças têm mesmo muito apetite, ao contrário de gente já mais velha, como ela mesma, a quem basta um bom prato de sopa e um assado à hora da ceia.
D. Antônia contava, naquele ano de 1835, a sua quadragésima nona primavera, era apenas três anos mais velha do que seu irmão Bento e, como ele, tinha também aquela consistência firme de carnes, os mes¬mos olhos negros, espertos e doces, a mesma voz calculada, e idêntica capacidade de rejuvenescimento. Era uma mulher alta e magra, ainda de rosto liso, cabelos negros sempre presos no mesmo coque de três grampos, vestia-se sempre em tons discretos, mas seus vestidos eram campeiros: nunca fora afeita das cidades, vivendo sempre em sua es-tância, com seus cavalos, seus pomares e seus pássaros, isso desde que ficara viúva do casamento com Joaquim Ferreira, moço a quem ama¬ra com todo o seu espírito, advogado, e que morrera numa carreira de cavalos, tendo caído da montaria e, com a espinha partida, vindo a fa-lecer assim, na mesma hora. D. Antônia tinha então vinte e sete anos e nenhum filho, e assim continuara a sua vida inteirinha. De Pelotas, onde fora viver após o casamento, voltara para a Estância do Brejo e lá fica¬ra gastando seus anos; dos filhos que não parira, quase não sentia qual¬quer falta: tinha para mais de doze sobrinhos e com isso se bastava muito bem.
Enquanto a pequena charrete vencia as milhas necessárias, sob o agradável sol de setembro, D. Antônia media uma certa felicidade em seu peito; vinham as duas irmãs e a cunhada, e vinham as sobrinhas moças e os pequenos, teria boas companhias por uma temporada, ou pelo tempo que durasse a guerra. Guerra, essa palavra teve a força de causar-lhe um longo arrepio. O irmão começava uma guerra contra o Império, contra a tirania do Império, contra os altos preços do charque e o imposto do sal. Bento começava uma guerra contra um rei, e isso a enchia de aflição e de orgulho. Recebera a sua carta ainda naquela al-vorada, e lera-a enquanto sorvia o seu mate. A erva e as palavras do irmão tinham lhe deixado um gosto amargo e um calor morno no cor¬po. E então, enquanto mandava servir pão e mate para o portador do bilhete, um gaúcho calado e de longos bigodes que a fitara com o res-peito devido à irmã de um coronel, pegara da sua pena e escrevera: "Que Deus e a Liberdade lhe acompanhem, meu irmão. Pode deixar Caetana e as outras sob os meus cuidados e os de Ana. A Estância do Brejo e os meus peões são seus quando precisar. Sua Antônia." De¬pois disso, recobrara alguma paz. Bento nascera para as guerras. E ela, como as outras, sabia esperar com paciência. Bento tinha estado nas guerras quase a maior parte da sua vida, e sempre voltara. Não era um homem feito para morrer, como o seu pobre Joaquim.
D. Rosa era uma cabocla de idade indefinida, carnes enxutas e sorriso cordial. Trabalhava para os Gonçalves da Silva desde que se vira em pé, assim como sua mãe, e ali naquelas terras à beira do Camaquã pas¬sara os últimos trinta anos de sua vida, sovando o pão, mexendo a tina de marmelada, a tina de pessegada, o doce de abóbora, zelando pela casa da estância, pelos jardins, pelos bichos do quintal, pelos empre¬gados e pelos negros de dentro. Era ela quem cuidava da cozinha e dos quartos, era ela quem conhecia os gostos de D. Ana e dos seus meninos, os jeitos de servir o mate para o senhor Paulo, o tempero das comidas que o senhor Bento mais apreciava quando vinha ali a cami¬nho das suas cavalhadas ou para rever a família da irmã.
Quando D. Antônia surgiu, ainda muito cedo, com a notícia da chegada dos outros, D. Rosa não se inquietou: estava tudo arreglado, os quartos todos limpos; os cinco quartos destinados às visitas tinham os lençóis alvos ainda cheirando a alfazema, as cortinas abertas para deixar o sol da primavera entrar nas peças ainda ressentidas do úmido inverno, as jarras com água fresca e limpa repousavam sobre cada cô-moda. O quarto da patroa também estava ao seu gosto, pois D. Rosa tinha sempre em mente que o dono da casa podia aparecer quando bem lhe aprouvesse, e D. Ana tinha muita satisfação na primavera da es-tância, no perfume dos jasmins e das madressilvas, no canto dos curiangos que rasgava o céu das noites estreladas.
— São treze que chegam, contando com as três negras, D. Rosa. Me arrume acomodação para elas também, no quarto grande do quintal, junto com as outras da casa. — Antônia depois pensou um pouco, se não faltava ninguém, recordando mentalmente a lista que Bento lhe fizera com toda a sua gentileza, para que ela não fosse pega em despre-paro, e disse: — Vem com eles também o Terêncio, mas esse não sei se fica ou se volta para as terras do Bento. Ah, e tem os pequenos, é pre¬ciso um quarto para os dois meninos de Caetana, e outro para as meni¬nas pequenas. Acho que a negra Xica fica com elas à noite, veja bem isso.
D. Rosa assentiu, tranqüilamente. Com um seu chamado, Viriata e Beata apareceram, vindas da cozinha. D. Rosa deu-lhes algumas or¬dens: arrumassem os quartos dos pequenos, pusessem os dois berços que ficavam lá na despensa num outro quarto, para as meninas de D. Caetana. E mandassem Zé Pedra cortar mais lenha, as noites ainda eram bem frias por ali e precisavam aquecer a casa toda.
D. Antônia achou tudo por resolvido, depois disse:
— Vou lá para a varanda da frente. Não demora elas chegam, e quero recebê-las. Mande alguém me levar um mate.
Saiu em passos rápidos, adentrando o corredor da cozinha. Conhe¬cia bem aquela casa, desde meninota, tudo ali era um pouco seu tam¬bém. D. Rosa saiu para dar jeito nos seus afazeres, não sem antes avisar Viriata que levasse o mate para a patroa. E que cozinhasse mais feijão, mais arroz, mais aipim. Tinham também de pôr outro assado no forno.

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4

Passava do meio-dia quando a pequena procissão de charretes apare¬ceu na porteira da estância. O dia estava claro e sem nuvens, e o céu de um azul muito puro parecia alargar ainda mais a paisagem sem fim. Soprava uma brisa fresca que vinha dos lados do rio. D. Antônia, da sua cadeira na varanda, reconheceu o vulto de Terêncio a cavalo, de-certo que Bento o mandara para dar segurança às mulheres. Não que o pampa estivesse convulso, pois tudo ainda não passava de um suspi¬ro, um espasmo, um assunto para as rodas de chimarrão, para as co¬madres sussurrarem de olhos arregalados; de Porto Alegre, naquela manhã de vinte de setembro, nenhuma notícia ainda tinha chegado, fosse ela boa ou ruim. Mas Terêncio, forte e impávido, carranca prote¬gida pela sombra do chapéu de barbicacho, as esporas de prata — presente de Bento — rebrilhando ao sol da primavera, vinha guiando o pequeno comboio, e foi ele mesmo quem pulou do cavalo para abrir a porteira, antes que um dos peões da casa tivesse tempo de fazê-lo.
D. Antônia ficou esperando sem erguer-se: ainda tinham um bom caminho para chegar à frente da casa, mas já se sentia feliz por rever as irmãs e a cunhada, as sobrinhas e os sobrinhos. Dos moços, nem sinal. Decerto tinham ido com os outros para a cidade, o sangue aven¬tureiro corria em suas veias, era impossível que ficassem em casa en¬quanto tanto acontecia sob suas barbas ainda tão discretas. Os filhos de Caetana, os três mais velhos, esses andavam para o Rio de Janeiro, lá para perto do Império. D. Antônia tinha plena certeza de que se a guerra fosse mesmo coisa certa, Bento, Joaquim e Caetano haviam de voltar para o Rio Grande.
Viu a primeira charrete subindo a pequena estradinha de terra, conduzida por um negro: lá estavam D. Ana, vestida de azul, muito ereta, e Caetana, com uma das filhas no colo — devia ser Maria Angé-lica, a maiorzinha —, Caetana, tão bela, mesmo de longe, com seus negros cabelos a brilharem sob o sol. Vinha com elas a negra Xica, tra-zendo nos braços Ana Joaquina, um volume rosado, de bracinhos curtos e roliços. Sorriu, acenando-lhes. A mão enluvada de D. Ana ergueu-se no ar, alegre e inquieta. Caetana acenou com mais resguar¬do. D. Antônia a conhecia muito bem; numa hora dessas, com toda a certeza, devia estar pensando em Bento, no peito de Bento, desafiando as espadas, as carabinas e as adagas, conduzindo seus homens e seus sonhos. Sim, Caetana devia estar abatida, e ainda tinha os filhos pe-quenos a lhe darem as preocupações rotineiras. Mas amar Bento era conviver com essa sina, e Caetana sempre soubera disso.
A segunda charrete trazia Maria Manuela e sua filha Manuela, que tanto crescera desde o outono, e que já estava uma moça viçosa e mui¬to bonita, Milú, a criada de D. Ana, e os dois filhos de Caetana, Leão e Marco Antônio, que já vinham apontando isto e aquilo, naquela ân¬sia louca que os meninos têm de sair a correr e subir nas árvores. D. Antônia pôde ver que Maria Manuela tentava acalmá-los sem muito êxito, enquanto a negra Milú apenas ria seu riso de dentes muito bran-cos, o rosto retinto de preto contrastando com o lenço amarelo que lhe cingia os cabelos de carapinha. Maria Manuela reconheceu-a e ace¬nou, D. Antônia ergueu alto o braço e retribuiu longamente o aceno da irmã mais moça.
Por fim, vinham as outras sobrinhas, numa conversação alheia a tudo. D. Antônia recordou a sua própria mocidade ao vê-las, pássaras alegres, pulando e rindo na sua charrete. Perpétua, Rosário e Mariana, as três primas, vinham entretidas em falastrinas que duravam já desde a saída de Pelotas, enquanto um negrinho miúdo, impávido, guiava o par de cavalos rumo à casa. D. Antônia sabia que Manuela, a mais moça, preferira vir com a mãe no outro carro, mergulhada em seus silêncios. D. Antônia tinha muitas simpatias pela bonita Manuela, pois também fora moça de longos pensamentos, calada e misteriosa. A filha de Ben¬to e Caetana, Perpétua, que herdara o nome da avó paterna, já era fei¬ta de diverso barro, como as outras filhas de Maria Manuela: estavam alheias a tudo, nem tinham acenado para a tia na varanda, a conversa devia estar boa e decerto falavam de bailes e moços. Apenas Zefina, a criada de Caetana, é que vinha calada ao lado das sinhazinhas, enco¬lhida num canto do carro, olhando para tudo com uns olhos ávidos.
A um sinal de Terêncio, as três charretes pararam em frente à grande casa branca de janelas azuis com cortinas de veludo cinzento. D. Antônia desceu os cinco degraus da varanda e foi receber as irmãs e a cunhada. Ladeando a casa, duas carroças carregadas de malas e paco¬tes foram para os fundos do terreno. Terêncio seguiu-as, para ordenar o descarrego das malas das patroas.
— Sejam bem-vindas — disse D. Antônia, e tratou de abraçar D. Ana. — Está mais viçosa, irmã — falou, sorrindo. — Espero que a sua casa esteja a gosto. Eu mesma vim hoje cedo, dar ordens à D. Rosa. Os quartos estão todos prontos, e se não se atrasaram lá na cozinha, a mesa deve estar posta.
D. Ana sorriu um riso amplo e alegre, e seus olhinhos miúdos e escuros cintilaram de satisfação. Apertou com força a irmã, sentindo-lhe o volume das costelas sob o pano claro do vestido.
— Tive saudades de vosmecê, Antônia. Nem no inverno mais ri-goroso vosmecê se afasta daqui, hein, cabreira?
— Minha alma só tem sossego nesta terra, irmã. Devia já saber disso.
D. Ana cortou o ar com a mão enluvada:
— Não tem problema, Antônia. Agora estamos aqui. E, quem sabe, talvez fiquemos por um bom tempo... — suspirou e, por um segundo, seus olhos ficaram nebulosos, mas ela voltou logo a sorrir. — Vamos a ver, isto é com Deus e com os nossos homens... Depois se fala na guer¬ra, se é que teremos mesmo uma guerra pela frente. Por hora, há mui¬to o que fazer. É preciso acomodar essa gente toda. — E subindo os degraus da varanda, foi chamando: — D. Rosa! D. Rosa, chegamos e trouxemos crianças famintas! D. Rosa, fez um vaso com jasmins para o meu quarto?
A voz enérgica perdeu-se dentro da casa. D. Antônia abraçou Caetana e deu-lhe as boas-vindas. Caetana segurava pela mão a filha de cinco anos.
— Está bonita, Maria Angélica! Logo será moça, hein? Crescem como o capim, essas crianças... — D. Antônia acarinhou os cabelos dourados da menina, que sorria. — E vosmecê, como vai, cunhada?
Caetana abriu um sorriso doce e algo cansado. Seus olhos verdes cintilavam uma luz que dava mágica ao seu rosto.
— Estoy mui bien, Antônia. E muito bem ficarei até que me chegue uma carta do Bento... Vosmecê sabe, quando elas chegam, meio que morro, antecipando o conteúdo, quando elas tardam, é o medo... Mas sempre foi assim, desde que me casei. Até já estou acostumada com essas campanhas todas. Desta vez, ao menos, estamos juntas, cunhada.
— Teremos bons dias — disse a outra.
— De cierto, querida Antônia, de cierto.
Caetana tornou a pegar na mão da filha e foi ver como tinham ido de viagem os meninos. Movia-se entre todos com uma leveza de garça, alta e ereta como uma rainha. Caetana era, sem dúvida, uma das mais belas mulheres do Rio Grande. Nos bailes, nenhuma das moças con-seguia fazer melhor figura que ela, quando valsava pelo salão guiada por Bento Gonçalves.
D. Antônia abraçou por último a Maria Manuela, que lhe falou da amena viagem.
— A estrada esteve deserta por quase todo o tempo. Parece que o Rio Grande está em compasso de espera... Meu marido foi com Bento, faz dois dias... Só de pensar — baixou a voz —, estremeço. Se vier a guerra, compadre lutará contra compadre — e fez o sinal-da-cruz.
— Fique tranqüila, Maria. Vosmecê conhece: eles sabem bem o que fazem. Deixemos a eles esses assuntos...
— Está certa, irmã... No momento, tenho mesmo é vontade de comer alguma coisa e beber um suco fresco. A poeira me entrou pela garganta como o diabo.
Subiram juntas as escadas da varanda, onde uma criada já servia de beber para as moças e os meninos. D. Antônia gastou algum tempo com os filhos de Bento, mas logo eles entraram para explorar a casa numa cor¬reria desabalada. As quatro sobrinhas vieram então abraçá-la. D. Antônia disse a Perpétua que ela estava uma moça bonita, parecida com o pai.
— Está já para casar, Perpétua. É preciso que le achemos um bom marido, menina.
Perpétua enrubesceu um tanto e foi logo respondendo que em tempo de guerra era tarefa ingrata achar um pretendente. Tinha a pele acobreada da mãe, mas os olhos eram os mesmos de Bento, embora o olhar fosse mais dolente, e seus cabelos eram de um castanho muito escuro.
— Estão todos se juntando ao meu pai e aos outros, tia. Enquanto durar esta guerra, ficarei solteira por certo.
Não imaginava ela o que o futuro estava reservando à província, nem nenhuma das mulheres o imaginava naquele princípio manso de primavera nos pampas. Perpétua Garcia Gonçalves da Silva tinha es-peranças de que o verão já lhes trouxesse a paz. A paz e a vitória. E os bailes elegantes onde desfilaria os vestidos vindos de Buenos Aires e os sapatos de veludo que mandara buscar na Corte. D. Antônia tomou-lhe a mão:
— O tempo às vezes pode se arrastar muito nestas paragens, mi-nha filha... Mas tenha calma, se o seu marido está para vir, não há de ser a guerra que vai tirá-lo do seu caminho. Essas coisas estão progra-madas todas. Confie em mim, que eu sei desses assuntos de destino, pois aprendi da forma mais dura: vivendo.
Perpétua sorriu e deu um leve abraço na tia a quem sempre recor-dara como viúva. Parecia muito remoto que um dia D. Antônia, tão recatada e solitária, houvesse tido um homem ao seu lado na cama.
Rosário achegou-se, era a sua vez de abraçar D. Antônia. Pediu desculpas pela poeira. Estava querendo um longo banho morno. Ro¬sário era a mais citadina de todas: quando a mãe fora lhe dizer que deixariam Pelotas para ficar uns tempos na Estância da Barra, tranca¬ra-se no quarto por uma tarde inteira e chorara amargas lágrimas. Queria conhecer Paris, Buenos Aires, o Rio de Janeiro, queria os bai¬les da Corte, as danças e a vida alegre que as damas deviam levar, e agora, enquanto os homens pelejavam por sabe-se lá que sonhos, ela tinha de retirar-se ao campo, ao silencioso e infinito campo onde tudo parecia eternizar-se junto com o canto dos quero-queros. Rosário de Paula Ferreira não tinha amores às paragens do pampa, e agora estava ali, com as outras, destinada a um exílio cujo fim desconhecia.
— Antes do almoço, se vosmecê quiser, uma das negras prepara o seu banho. Agora me dê um abraço, que faz muitos meses que não lê vejo, menina. E vosmecê sabe que a poeira a mim nunca fez medo. — D. Antônia cercou-lhe a cintura fina com os braços fortes de montar e sorriu. Rosário era de consistência frágil, pele clara, olhos azuis, cabe¬los claros e muito lisos. Tinha umas mãos delicadas de segurar cristais. Imaginou-a sobre uma sela e sorriu um riso alegre: Rosário tinhas ares de salão, isso sim. — Agora vá ao seu banho — e empurrou a moça para dentro da casa.
Mariana beijou a tia no rosto, e alegria da chegada dava um brilho aos seus olhos castanhos.
— Tia, quanta saudade! Fiquei feliz que vínhamos estar com vosmecê.
E logo, no mesmo alvoroço, já entrava na casa, buscando Perpé¬tua. Era uma moça de estatura meã, pele morena e rosto forte, cuja graça maior estava nos oblíquos olhos castanhos de longas pestanas negras. Olhos de índia, dizia a mãe. E era alvoroçada como uma criança.
Manuela, a mais moça, abraçou a tia com sincero afeto. Estava um tanto descabelada, pois tirara o chapéu a meio caminho para sentir a brisa nos cabelos, e seu rosto bem-feito, os olhos verdes muito claros, tudo tinha um viço de coisa nova e misteriosa, e a boca cheia abriu-se num sorriso. Usava um vestido amarelo, com peito de rendas, que lhe acentuava a graça.
— Tia Antônia — disse somente, e suas mãos mornas apertaram as palmas ossudas de Antônia.
— Vosmecê está uma moça, Manuela. A última vez que le vi, no verão passado, ainda era uma menina.
— O tempo passa, tia — falou Manuela, por falar. E aspirou o ar cheio de jasmins que pairava sobre a varanda e o jardim. — E bom estar aqui.
D. Antônia sorriu para a sobrinha preferida. Mandou-a entrar, então. Fosse ter com as outras, tirar a poeira, preparar-se para o almo¬ço; afinal, estavam todos famintos.
— Até eu, menina, que hoje acordei ao raiar do dia e quase nada comi. Não vejo a hora de ver as travessas na mesa!
Ficou espiando Manuela adentrar a casa, pisando leve no chão de madeira, e ir seguindo pelo corredor já conhecido, em direção ao quarto que uma negra lhe indicara. E sentiu um leve arrepio lamber suas car¬nes, ao ver a sobrinha assim, flanando pela casa feito uma fada, mas creditou-o à brisa da primavera, que, naquelas paragens dos pampas, ainda enregelava.
Restava sozinha na varanda. As mulheres todas e as criadas tinham ido tratar da chegada, abrir as malas, preparar-se para o almoço. D. Antônia sorriu: a casa estava cheia como nas férias, e uma alegria nova e buliçosa ardia em tudo. "Por quanto tempo?", não pôde deixar de se perguntar. "Por quanto tempo, meu Deus?"

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D. Ana sentou na cama e acarinhou o colchão de molas. No lado es¬querdo, podia apalpar, mais com a alma do que com os dedos, as mar-cas do corpo do seu Paulo. Deitou-se por um instante, mas encontrou a cama vazia do calor e do cheiro do marido, cheiro forte, de tabaco com limão. Em tudo, pairava um aroma de limpeza que doeu em seu peito. Paulo não era mais um moço, embora tivesse a compleição ro¬busta dos cavaleiros, alto, espáduas largas, a barba espessa, a voz for¬te, as mãos calejadas e firmes de segurar o laço. Já tinha lá seus cinqüenta anos, embora os cabelos estivessem negros como na juven¬tude e ele ainda sonhasse os mesmos sonhos de quem tem a vida pela frente. Gostava do imperador, da Corte, da rotina calma alternada pelas invernadas que fazia questão de comandar, mas agora estava lá, assim como Bento, desafiando o Regente e tudo o que ele significava, com a arma em punho contra tudo que sempre conhecera. Nos últimos tem¬pos, a coisa andava brava para os estancieiros, e D. Ana via nos olhos do esposo uma crescente angústia, que se traduzia nuns gestos secos, numas noites sem sono, quando sentia-o rolar ao seu lado, na cama, tentando acalmar os pensamentos. Quando ele a chamara ao escritó¬rio, ainda na semana passada, e contara que marchariam sob o coman¬do de Bento para tomar Porto Alegre, D. Ana já sabia de tudo, porque aprendera desde menina a pescar nos silêncios as respostas para as suas dúvidas. Olhando o marido pitar seu palheiro, o rosto fingindo uma calma que não sentia de todo, os olhos verdes tomados de uma febre misteriosa, D. Ana quisera apenas saber:
— E José e Pedro?
O marido mantivera firme o olhar.
— Já falei com eles. Disseram que vão conosco. — E antevendo o medo nos olhos de Ana, acrescentara com voz decidida: — São ho¬mens, são rio-grandenses, serão donos destas terras, têm o direito de ir e de lutar por aquilo em que acreditam.
E agora D. Ana estava ali. Seus três homens, tudo de seu, estavam talvez nos arredores de Porto Alegre, na Azenha, conspirando, afian¬do as adagas, limpando as baionetas, comendo o churrasco assado nas fogueiras, aspirando aquele cheiro de terra, de cavalos e de ansiedade que devia pairar em todos os acampamentos de soldados.
D. Ana acarinhou outra vez o colchão, sob a colcha de matelassê branca. Um sol dourado entrava pela janela de cortinas abertas, um sol tênue e aconchegante. Precisava se ajeitar para o almoço; afinal de contas, não era causo de tristezas, não ainda. Teriam pela frente muitos dias de angústia, à espera de uma notícia, de boa sorte ou de malogro, e então, só então, se fosse o caso, viria a tristeza estar com elas. A tristeza serena que era com¬panheira constante das mulheres do pampa. Sim, pois não havia uma mulher que não tivesse passado pela espera de uma guerra, que não tives¬se rezado uma novena pelo marido, acendido uma vela pelo filho ou pelo pai. Sua mãe conhecera a angústia de espera, e antes dela sua avó e sua bisavó... Todas as mulheres na estância estavam na mesma situação, e ela, Ana Joaquina da Silva Santos, era a dona da casa. Levantou, abriu o ar¬mário de madeira escura e tirou dali um vestido. Foi ao toucador e, pe¬gando da jarra, derramou um tanto de água na bacia de louça. Lavou-se rapidamente. Milú, como uma sombra, adentrou o quarto trazendo uma toalha branca. Secou a patroa com gestos delicados e ágeis, ajudou-a a trocar as saias, vestir a roupa limpa e refazer a trança do cabelo. Milú ti¬nha uns dedos longos e dourados que corriam pelas melenas de D. Ana como asas, quase voando. A trança foi presa no coque perfeito.
— Está ótimo, Milú — D. Ana presenteou a criada com um sorri-so. — Avise na cozinha que já estou indo.
Milú tinha uma voz suave, condizente com seu corpo miúdo de negrinha adolescente. Disse um "está bem, senhora", e saiu ventando do quarto, mas sem bater a porta, coisa que D. Ana execrava.
Sentadas em torno da mesa, eram dez pessoas. As duas meninas pe¬quenas de Caetana já tinham ganhado a sopa e o leite, e agora dormiam um soninho exausto de viagem sob o olhar atento da negra Xica. O al¬moço teve ares festivos: a carne assada, a galinha com molho, o feijão, o arroz, o purê e o aipim cozido na manteiga espalhavam-se em várias tra¬vessas sobre a mesa recoberta com a toalha bordada a mão por D. Per¬pétua, muitos anos atrás.
Um pequeno e inquieto silêncio se fez apenas quando, antes da refeição, como era o costume na casa, D. Ana juntou as mãos em ora¬ção e pediu "pelos nossos maridos e filhos, que Deus os guie com a Sua própria mão, e que logo retornem, vitoriosos, a casa". A voz das mulheres respondeu em coro um amém; Leão e Marco Antônio esta¬vam mais ocupados em mastigar.
Caetana Joana Francisca Garcia Gonçalves da Silva fez força para conter o leve tremor que assaltou suas carnes, mas foi em vão. Baixou os olhos para a mesa, e em suas retinas dançava ainda o vulto de seu adorado Bento, montado no alazão, usando o dólmã, espada na cintu¬ra, as botas negras que cutucavam o cavalo com as esporas de prata. E reviu ainda o seu adeus, naquela alvorada em que partira de casa com Onofre e os outros, para tomar a Capital. Sob a luz tênue do amanhe¬cer, pareciam figuras de mágica, vultos dourados pelos primeiros mati¬zes do dia. E fora assim que o guardara no último instante, as costas eretas, o cavalo troteando, uma mancha negra que ia diminuindo pou¬co a pouco. Ficara na varanda, enrolada no xale de lã, com o coração acelerado querendo escapar-lhe pela boca. Dentro de casa, a filha pe¬quena chorava.
D. Ana, à cabeceira da mesa, começou a servir-se, um pouco de tudo, porque nada melhor do que um estômago cheio para acalmar as ânsias da alma, e uma sesta, isso sim, na sua cama, sentindo entrar pela janela o perfume de jasmins e a brisa fresca do pampa. Notou que, ao seu lado, Caetana era a única de prato vazio, vazio como seus olhos verdes que vagavam perdidos entre uma travessa e outra, como que a contemplar velhos fantasmas.
— Vosmecê não tem fome, cunhada?
A voz morna arrancou Caetana de seu torpor, e ela sorriu um riso triste.
— Desculpe, Ana. É que não pude deixar de pensar em Bento. E em onde anda ele a uma hora dessas...
D. Ana abriu um sorriso, tinha ainda muito alvos os dentes. Esten-deu o braço e tocou na mão da cunhada. Seus olhos eram um lago de paz e de conforto.
— Esteja calma, Caetana. Numa hora dessas, se bem imagino, Ben¬to e os outros devem estar se refestelando com um bom churrasco. Vosmecê conhece o apetite que têm os valentes... Comem um boi pela perna.
As moças riram da graça da tia. D. Antônia, sentada à outra cabe-ceira, ainda disse:
— Se vão tomar Porto Alegre, seja esta noite ou amanhã, decerto que estarão com o estômago cheio. E se eles comem, não há por que deixarmos nós de nos regalar. Afinal, já dizia minha mãe: saco vazio não pára em pé.
Caetana sorriu um riso leve e pôs também alguma comida em seu prato, comida esta que venceu aos bocadinhos, embora estivesse de gosto bom e muito bem temperada, porque ainda Bento, seu Bento, espaçoso e forte como um touro, ocupava cada palmo de seu espírito. Mas o almoço transcorreu com leveza, e as moças trataram de falar de coisas alegres, pois para elas a temporada na estância era nada mais do que férias, logo deveriam voltar para Pelotas, para os chás domingueiros com as amigas de bordado, e para os bailes. Isso mesmo, para os bai¬les, que elas tanto desejavam.
— A cor desta primavera é o amarelo — disse Rosário. — Pena que para mim não caia bem, pois sou toda clara, de pele e de cabelos. Vestida de amarelo, ficarei igual a uma gema de ovo.
E D. Ana riu com vontade, deitando seus olhos castanhos na¬quela mocinha citadina, de pulsos finos e olhos azuis como o céu que brilhava lá fora. Considerou que Rosário era frágil, não herda¬ra a força dos Gonçalves da Silva, talvez ainda sofresse muito nessa vida campeira. No Rio Grande, os jogos da Corte eram brincadei¬ras dos tempos de paz, e a fronteira quase nunca tinha paz, quase nunca... Ela recordou sua velha mãe e as muitas madrugadas em que a vira pedalando a máquina de costura para espantar o medo da cama vazia. Nunca a vira chorar, nem na paz nem na guerra, não a vira chorar nem quando enterrara os filhos, um pequeno, o outro já moço, ferido de bala numa batalha que nem um nome dei¬xara para lembrança. D. Perpétua da Costa Meirelles não entendia de modas, vestia-se sempre de cinzento ou azul. Branco, usara ape¬nas no dia do casamento. Morrera calada, de velhice, naquela casa mesmo em que se encontravam, quando viera visitar a filha num verão, havia tempos.
D. Ana fitou Rosário com o canto dos olhos; havia nela alguma coisa dos traços da avó, a testa alta, a boca delicada, mas Rosário tinha uns olhos úmidos, afeitos ao pranto, e os olhos de D. Perpétua foram sem¬pre secos, até na hora da morte.
— A moda é nada mais do que um passatempo, Rosário — disse D. Ana, sorrindo, ao cruzar os talheres. — O azul, o branco, o verde, o amarelo e o cinzento sempre existiram e sempre foram boas cores para uma mulher de bem vestir — e quando acabou de falar, vendo alguma mágoa no rosto frívolo da sobrinha, pareceu-lhe que o vulto da mãe a espiava de um canto da sala, perto da cortina, e que lhe sorria o mesmo riso comedido de toda a sua vida.
Comeram a sobremesa num silêncio cansado da viagem. Apenas Maria Manuela e D. Antônia prosearam um tanto sobre a rudeza do inverno passado fazia pouco, sobre flores, coisa da qual ambas enten-diam deveras. D. Antônia despediu-se no final da refeição: precisava voltar para a Estância do Brejo, cuidar dos afazeres da casa, da venda de uma ponta de gado.
— Mas amanhã venho estar com vosmecês para mais uma prosa — disse ela, e saiu em busca do cocheiro, que devia estar de assunto com os peões da casa.
Logo depois, cada uma das mulheres recolheu-se ao seu quarto. Manuela e Mariana dividiam a última peça do corredor, que dava vis¬tas para a figueira do quintal; Perpétua e a prima Rosário ganharam o quarto ao lado do pequeno escritório que também servia de biblioteca — o senhor Paulo tinha muitos livros em espanhol e francês, línguas da qual tinha um bom conhecimento.
— Lerei um livro em francês — disse Rosário à prima, antes de fechar os olhos, já de combinação, deitada na cama. — Sei um pouco do idioma, pois tive algumas aulas com a senhorita Olívia, no ano pas¬sado. O resto, adivinharei. É um bom jeito de passar o tempo por aqui...
Perpétua nem chegou a responder: antes de Rosário acabar de falar, já ressonava. Talvez sonhasse com um noivo de olhos azuis, talvez.
Em seu quarto, Caetana olhava o teto, em vão, o sono não lhe vinha, apesar do cansaço que sentia pesar nos seus membros. Ouviu um leve arrastar de passos no corredor, decerto as criadas botavam a sala em ordem outra vez. No quarto ao lado, pelo silêncio que lhe chegava, as filhas dormiam calmamente.
Ergueu-se da cama após alguns minutos de inquietação. Era uma alcova simples: a cama larga, de madeira escura, um rosário preso à parede, sobre a cabeceira, janelas altas com cortinas de veludo azul, um pequeno toucador com as coisas de higiene, a jarra de louça bran¬ca e a bacia com florezinhas azuis, um espelho de cristal com bela moldura de prata escalavrada. Um armário pesado, de duas portas, ficava assentado em frente à cama. Ali, Zefina já tinha disposto os seus vestidos, xales e chapéus. No outro canto do quarto, perto da janela, uma pequena mesinha segurava um maço de folhas, pena de metal e tinteiro.
Caetana puxou a cadeira e sentou. Tomou da pena, mergulhando-a no líquido negro do tinteiro de cristal, e pôs-se a escrever numa faina louca que deixava irregular a sua letra sempre delicada.

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6

"Amado esposo,
Estamos aqui na estância da sua irmã, Ana, todas as mulheres reuni¬das para esta espera que, rezo, seja breve. Ainda não tive notícias suas, e sei o quanto é cedo para isto; sei também que vosmecê se preocupa comigo e com os nossos filhos, fazendo o possível para que tudo nos seja leve. Mas eu sofro, Bento. E sofro por vosmecê. A cada instante, é somente em vosmecê que penso, se está bem, se terá êxito, e se voltará para a sua casa e para os meus braços. Sem usted, não sei viver, e até mesmo um simples dia se torna custoso como um inverno... Mas espero, e rezo.
Desculpe esta sua esposa tão fraca, que, de tanto viver esta angústia, já desaprendeu a suportá-la. A espera é um exercício duro e lento, meu querido, que só os fortes logram vencer. Vencê-la-ei, por usted. Nunca ignorei a sua fibra, nem a força dos seus sonhos, e luto para estar eu à altura da sua companhia e da grandeza dos seus atos.
Quando um seu vier dar aqui, com notícias da sua pessoa e das suas tropas, creio estar trêmula demais para responder-lhe a contento, e é por isso que já me desafogo nestas linhas ansiosas... Saiba que seus filhos es¬tão bem, e que Leão perguntou já muitas vezes do seu paradeiro, queria ele estar com usted, lutar ao seu lado. É um menino que já nasceu com gosto pelas batalhas, anda sempre com a espada que usted talhou para ele enfiada na cinta da calçola, então desde já vou preparando minha alma para sofrer também por ele quando for o tempo. Maria Angélica disse-me que sonhou com usted a tarde, e seus olhinhos verdes brilharam de con-tentamento ao recordar o pai. A pequena Ana Joaquina, Marco Antônio e Perpétua le mandam seus carinhos. Dos mais velhos, ainda não tive notí¬cias, mas decerto estão a salvo na Corte. E sua irmã Antônia veio nos re¬ceber com a doçura de sempre. Há algo na serena força dela que me remete a usted e que me conforta.
Por tudo isto, pode, meu caro Bento, acalmar seu coração no que tan- ge a nós, sua família. Saiba que tenho pedido à Virgem por usted, fervo¬rosamente, e que em cada gesto meu há uma palavra de oração sussurra¬da. Que a glória le acompanhe, esposo, onde quer que vosmecê pise. Esse desejo não é apenas meu, mas das suas parentas todas. Aqui na Barra, rezamos muito por vosmecê e pelos nossos.
Que Deus cavalgue ao seu lado,
Com todo o amor,
Sua Caetana
Estância da Barra, 20 de setembro de 1835"

Dobrou com cuidado e lacrou a carta com cera. Depois, guardou-a numa gavetinha, com o zelo de quem guarda no cofre uma jóia de muita estima.
Sem mais o que fazer, voltou para o leito; deitando-se, fechou os olhos e rezou para dormir um tantinho que fosse. Suas costas estavam doridas da viagem, e ela tinha ganas de chorar. Lá fora, começou a soprar um leve vento de primavera. A tardinha, rezaria no oratório. Só a Virgem poderia sossegar-lhe a alma.

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Cadernos de Manuela
Estância da Barra, 21 de setembro de 1835.

Nosso primeiro dia na estância passou sem acontecimentos espe-ciais. Claro, não pude deixar de notar a angústia que se enreda nos olhos de Caetana feito um gato, arredia como um gato. Estranho, Caetana é minha tia, pois casou-se com meu tio Bento, e no entanto, mesmo a tendo conhecido assim, ao lado do tio, desde que nasci, não posso chamá-la de tia. Há uma dignidade estranha nela, em cada gesto seu, cada olhar. E mulher, apenas, e é tanto. Seus suspiros exalam suave fragrância, e imagino que Bento Gonçalves tenha por ela se apaixonado ao primeiro olhar, quando por acaso conheceu-a em al¬guma tertúlia uruguaia, na casa de seu pai ou de um outro estancieiro chegado seu. Meu tio Bento também é um homem marcante, de força. Quando pisa no chão, é como se a madeira tremesse um tanto a mais, mas não por seu peso, nem que pise forte, é que tem nos olhos, nas carnes, no corpo todo um poder e uma calma dos quais não se pode escapar. Meu tio, mesmo não estando entre nós, marca-nos a cada uma com a força de seus gestos: é por um ideal seu que estamos aqui, esperando, divididas entre o medo e a euforia. Caetana, por certo, com sua digna beleza e seu espírito ao mesmo tempo tão frágil e tão forte, deve ter-se rendido a essa aura que de Bento Gonçalves exala. Aura de imperador, mesmo que nesse momento esteja ele lu¬tando contra um.
Caetana, ao almoço, mal comeu. E pouco disse, apenas olhava tudo inquietamente, e tanto, que me pareceu estar vendo o nada, decerto retida entre suas lembranças. Tive vontades de sentar ao seu lado e de dizer-lhe que também eu sei do que ela sabe. Sim, pois ela sabe... Fica¬remos aqui muito tempo. Mais tempo do que qualquer uma de nós possa imaginar. Ficaremos aqui esperando, esperando, esperando. Da estrela de fogo que vi na noite do novo ano, não falei a ninguém, mas tenho seu recado marcado a ferro em minha alma. Minhas irmãs, por certo, ririam de mim. Dizem-me densa. Densa como a cerração que cobre estes campos ao alvorecer, um manto opaco de água condensada, um manto, talvez, de lágrimas, lágrimas choradas pelas mulheres daqui por Caetana, quem sabe.
Acordei hoje antes ainda da alvorada, e, como imaginei, lá estava a bruma cobrindo tudo, uma bruma úmida e gélida, e também um silên-cio aterrador, um silêncio digno da pior espera. Demorou muito tem¬po para que um primeiro pássaro cantasse e, com seu canto, quebrasse a barra da noite, com seus presságios e sonhos angustiantes. Caetana chorou esta noite, tenho certeza. Eu não chorei: ficaremos muito tem¬po reunidas nesta casa, unidas nesta espera, e algo me diz que as mi¬nhas lágrimas terão serventia apenas mais tarde...
Hoje é o dia marcado.
Ainda não são sete horas, e pergunto-me se Porto Alegre já ama-nheceu dominada pelo exército de meu tio. Não tivemos ainda qual¬quer notícia, e tudo lá fora parece aguardar, até os pássaros piam menos, em seus galhos, ainda derreados pelo frio que esta noite nos trouxe; até a figueira, parece fitar-me com perguntas terríveis para as quais não tenho resposta. Sei que, ao café, uma nova inquietação virá juntar-se a nós, terá seu lugar à mesa e, talvez, a sua xícara. Mas ninguém terá coragem de formular a pergunta, a terrível pergunta, e os segundos passarão por nós com suas lâminas afiadas de tempo, sem que ninguém interrompa o bordado ou a leitura por mais de um momento que seja, um momento imperceptível. A arte de sofrer é inconsciente... E é pre¬ciso fingir que se vive, é preciso. Não pensar em meu pai, no seu cavalo dourado, do qual tanto gosto, não pensar em sua voz, e em seu grito. Terá ele ainda a sua espada presa à cinta? E meu irmão, Antônio, que vive a incomodar minhas leituras com sua alegria buliçosa de homem novo, e meu irmão, com que olhos receberá esta manhã, e onde? Terá vitórias e façanhas para contar aos filhos, ou cicatrizes? Ninguém sabe, e os pássaros teimam em fazer silêncio nos seus ninhos.
Batem à porta. Mariana, em sua cama, está para despertar. Mariana sempre gostou que a deixassem dormir até mais tarde. É a negra Bea¬ta, com sua voz esquisita, metálica, que nos chama do corredor, dizen¬do que a mesa do café está pronta e que nos esperam. Vamos todas, com nossos vestidos rendados e nossas angústias. Mas é preciso. Pisar o chão com a leveza que de nós esperam, sorrir um sorriso primaveril e estar feliz, principalmente, estar feliz como a mais tola das criaturas... Mariana reclama um pouco, lava o rosto na água fria, escolhe um ves¬tido qualquer, pela manhã não liga nem para as modas.
Deixo aqui estas linhas, D. Ana gosta de todos reunidos à mesa e não hei de me fazer esperar. Um pássaro piou lá fora, um canto morno como um alento ou uma xícara de chá.
Manuela.

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8

As primeiras horas da manhã gastaram-se lentamente. Um sol, a princípio tímido, começou a dourar os campos. Havia feito muito frio na noite anterior, mas no pampa, mesmo em madrugadas prima¬veris, o frio mostrava-se intenso, e as camas recebiam muitos cobertores. À noite, nas salas de família, a lareira era acesa. No seu crepitar, as conversas mansas embalavam-se, e o mate passava de mão em mão, enquanto o luzio dos palheiros se fazia ver, exalando o cheiro acre do fumo de rolo.
Mas não naquela casa. Na casa branca da Estância da Barra havia um número tão alto de mulheres, que a voz delas é que ditava os mo¬dos. E as mulheres não pitavam, não tomavam o mate à noite. Lá fora, à beira do fogo, dois ou três peões, enquanto a carne assava respingando gordura, lambiam seus palheiros. Terêncio pernoitara na estância aquela noite, era mais um na volta do fogo, um vulto alto, calado, de olhos firmes e dedicação canina a Bento Gonçalves. Mas, ao alvore¬cer, ainda quando o mundo estava frio e nebuloso, tomara o caminho da Estância do Cristal, onde deveria esperar quaisquer ordens do pa¬trão, enquanto zelava pelo seu gado e pelas suas terras. Com a partida de Terêncio, ficara Manuel, capataz da Barra, mais os seus peões, o negro Zé Pedra, muito querido de D. Ana, e o resto dos escravos que cuidavam da terra e das coisas dali.
Era, desde então, uma casa de mulheres. A noite anterior fora à bei¬ra do fogo que crepitava na lareira, nisso sim uma casa igual a outras; mas pouco se falou, nem se viu o brilho dos palheiros queimando: bebeu-se um tanto de chá, quando Beata apareceu com o bule e um prato de bolo de milho; os rostos baixos ocupavam-se com bordados delica¬díssimos, a cor que se via, alheia ao intenso brilho do pinho que ardia sob as chamas, era vivida cor de seda: o verde, o vermelho, o azul que traçava nos panos flores, arabescos e outras maravilhas de fino artesa¬nato. Uma ou outra das moças se ocupava de ler sob a luz de um cande¬labro, mexendo os lábios vagarosamente, imperceptivelmente até, como as preceptoras lhes tinham ensinado nas longínquas tardes de lições.
Lá pelas tantas, quando o sono já as assaltava, ou coisa pior ronda¬va seus espíritos, quando Caetana mal podia acertar o fio de seda no buraco da agulha, quando Maria Manuela começou a pensar no mari¬do e no filho, enquanto ouvia zunir o vento lá fora no capão, D. Ana ergueu-se da sua poltrona e foi para o piano. Levantou a tampa envernizada com um único gesto, e as mãos brancas e ágeis correram pelas teclas, fizeram brotar uma, duas, três valsas. As moças alegra¬ram-se bastante: fecharam os livros, ficaram pensando nos bailes. Maria Manuela abriu um tênue sorriso, o marido gostava de valsar aquela, dava passos largos, queria dar voltas pelo salão, exibi-la aos outros, mostrar que era um bailarino de monta. Caetana também pensou em Bento Gonçalves. Bento, que amava as músicas, que não perdia um baile, que valsava com a mesma faina que tinha para guerrear.
— Toca uma polca, tia! — pediu Perpétua, com os olhos brilhando.
D. Ana abriu um sorriso farto. Deu nova vida aos dedos no tecla-do. As moças reconheceram a música, riram, bateram palminhas. Ro-sário ergueu-se de um pulo, deixando o livro escorregar para o tapete, e, fazendo gestos com o braço, declamou:
— "Eu plantei a sempre-viva,
sempre-viva não nasceu.
Tomara que sempre viva
O teu coração com o meu."
As mulheres aplaudiram em coro. Caetana tinha os olhos verdes ar¬dentes, seus pés, sob a saia azulada do vestido, acompanhavam o ritmo da melodia. Manuela largou o bordado com o qual se entediava e tam¬bém ergueu-se, para responder à irmã. Testou a voz e, com graça, disse:
— "Tu plantaste a sempre-viva,
sempre-viva não nasceu.
É porque teu coração
Não quer viver com o meu."
Palmas outra vez. Rosário deu o braço à irmã e seguiram as duas dançando pela sala que a lareira iluminava de maneira inquieta, como se fossem um par de noivos num baile. Mariana e Perpétua juntaram-se a elas. D. Ana tinha uma alegria tão vivida em seu rosto, que pare¬cia remoçada. As outras sorriam. Manuela dava voltas pela sala, e seu pensamento voava: não era a irmã que ela via, era um outro homem que lhe dava o braço, e um calor morno e acolhedor dele emanava para a sua pele, enquanto faziam giros loucos pela sala cheia de convivas. Ah, e ela se sentia tão bonita, bonita como uma jóia, e feliz, explodiria de felicidade bem ali, no meio de todos... E a música, a música enchia seus ouvidos e seu coração...
D. Ana parou de tocar, de repente.
As moças riram, jogaram-se com estardalhaço nas suas poltronas, rostos afogueados. Manuela estava atônita. Olhou a sala vazia de visi-tantes, olhou as outras mulheres, Viriata parada num canto da sala, com seu vestido velho, torcendo os dedos pretos e encaroçados, emo¬cionada com a música que ouvira.
— Vosmecê ficou tonta, Manuela?
A voz da mãe fez-se ouvir. Manuela negou, abriu um sorriso, sen-tou no seu lugar, pegou o bordado do chão e ajeitou-o um pouco, sem vontade. D. Ana ergueu-se do seu posto ao piano.
— Está tarde — disse.— Já é bem hora de irmos dormir... Ama¬nhã será um longo dia.
E, à menção do dia seguinte, o rosto de Caetana ganhou outra vez ares misteriosos, e uma sombra nublou o verde agreste dos seus olhos. Foi ela a primeira a recolher-se, alegando que ia ver como estavam passando os filhos pequenos.
E depois as outras recolheram-se.
E a noite fria esgotou-se nas claridades da aurora.
E já estavam sentadas à mesa do café, D. Ana à cabeceira, naquela manhã do dia vinte e um de setembro do ano de 1835, quando Zefina adentrou a sala correndo e, tendo esquecido todas as cerimônias e jei¬tos de tratar as senhoras, gritou, com uma voz aparvalhada:
— Vem chegando um homem aí! E tá usando um lenço encarnado no chapéu! Deve tá trazendo as notícia que as senhora tanto espera, Deus do céu!
Caetana Joana Francisca Garcia Gonçalves da Silva não achou forças para repreender a atitude da escrava. Ergueu-se da mesa num pulo, lívida como um fantasma. Seu rosto pálido confundia-se com o vestido de seda marfim que ela usava. As mulheres pararam todas. Mariana tinha na boca um pedaço de bolo que esquecera de mastigar por muitos minutos. Caetana saiu correndo para a varanda. D. Ana seguiu-a, e todas as outras foram atrás, a trêmula Zefina por último: estava ninando Ana Joaquina quando espiara pela janela e vira o ho-mem galopando pros lados da casa. Deitara a menina em seu berço e saíra correndo para a sala. Ana Joaquina ficara ali deitadinha, de olhos abertos, resmungando alguma coisa que a ama não chegara a ouvir.
Caetana desceu a escada da varanda, sentindo que as parentas a se¬guiam. Viu o homem apear, desmontar do cavalo, que entregou para um negro, e, dando uns passos rápidos, postar-se à sua frente, fitando-a com o respeito que lhe devia por ser uma dama e esposa de quem era.
— Buenos dias, senhora Caetana. — A voz do homem era forte e cerimoniosa.
— Buenos dias — respondeu Caetana.
— Trago aqui uma carta que o coronel Bento Gonçalves mandou para a senhora. — E tirando do bolso do colete um pequeno papel amarelo, com o selo de cera vermelha de Bento Gonçalves, estendeu-o para Caetana. — Permisso, senhora.
Caetana arrancou da mão do homem a carta. Desculpou-se depois pela ansiedade. O soldado devolveu-lhe um sorriso de compreensão.
Zé Pedra surgiu por ali. D. Ana convidou o homem a tomar um mate e comer algo na cozinha, ao que ele agradeceu: cavalgara desde o alvo¬recer para estar ali com a carta do coronel, e aceitava de muito gosto o que havia de comer e de beber. Também tinha precisão de descansar um pouco, antes de voltar para Porto Alegre, onde estava o resto das tropas. Zé Pedra, um negro atarracado e com cara de poucos amigos, mas que tinha um coração de manteiga e que carregara no lombo, brin¬cando de cavalinho, os dois filhos de D. Ana, fez sinal para que o sol¬dado o seguisse até os fundos da casa principal.
Caetana correu para a sala, sentando numa poltrona, com a carta em seu colo. Estava trêmula, mas aguardou que as outras se acomo-dassem ao entorno, uma a uma, as cunhadas e as sobrinhas, a filha ao seu lado, e que a negra Zefina, que tinha homem arreglado para servir com Netto na causa, se postasse perto da janela, discretamente. Só então soltou o lacre onde vinham as iniciais do marido. Na sala, nenhum som se ouvia, nem mesmo a brisa sacudia as árvores do quintal. A voz de Caetana tremeu levemente quando ela começou a ler.

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"Minha cara Caetana,
Escrevo estas linhas breves do gabinete do antigo presidente desta nossa província, Antônio Rodrigues Fernandes Braga, que, provando a sua total incapacidade e falta de coragem, fugiu de Porto Alegre num navio antes mesmo da chegada das nossas tropas. Entramos na cidade ainda nesta madrugada, o que sucedeu sem muitas pelejas e quase sem derramamen¬to de sangue. Peço então, a usted, às minhas irmãs, e às outras todas que fiquem calmas e tranqüilas e que tenham fé em Deus, pois ele está do lado dos justos e nos guia nesta empreitada.
As coisas, minha Caetana, estão em bom pé, mas há muito a ser feito. Rio Pardo ainda resiste, mas nossas tropas logo vencerão mais esta prova. Esta cidade de Porto Alegre, até o momento em que le escrevo, permane¬ce deserta e medrosa, decerto que Braga e os seus andaram espalhando as piores mentiras sobre nossas intenções para com o Rio Grande e o seu povo. Mas tenha fé, Caetana, que logo dar-le-ei mais boas notícias.
Sinto muito a sua falta, esposa. Quisera estar ao seu lado, mas os deveres para com a minha terra aqui me seguram. Dê um beijo longo nos meninos, outro nas meninas. E peça para que Perpétua reze por mim tam¬bém, que suas orações são fervorosas. Alcance um abraço meu a cada uma das minhas irmãs, e diga-lhes que todos da família estão bem e a esta hora descansam da longa noite que tivemos.
Com todo o meu afeto,
Bento Gonçalves da Silva
Porto Alegre, 21 de setembro de 1835"

Quando Caetana acabou a leitura, tinha lágrimas nos olhos. D. Ana também chorava, de alívio e emoção. Tivera uma longa noite insone, pen¬sando nos filhos e em Paulo, mas agora sabia, agora tinha certeza de que todos estavam bem, que a Capital era deles e que tudo acabaria em paz.
— Graças ao bom Deus! — exclamou Maria Manuela, que pen¬sava mais em Antônio, que nunca estivera em batalha, do que no espo¬so, tão hábil com o sabre, que fazia lenda na sua terra.
Manuela, Mariana, Rosário e Perpétua abraçaram-se com alegria. Perpétua, mais do que todas, estava radiante por ter o pai falado em suas orações. Sim, rezaria por ele e pelos seus exércitos com toda a força da sua alma. Rosário abraçou a mãe, ficou feliz pelo tio, pelo pai e pelo irmão, mas chegou-se a D. Ana e, numa voz de conchavos, quis saber:
— Esta carta significa que podemos voltar para casa, tia?
— Esta carta, minha filha, significa que nossos homens estão vi¬vos, ou estavam vivos até esta alvorada. Bento disse que há muito para ser feito, e que Rio Pardo ainda resiste... — Num suspiro, D. Ana acres-centou: — Vamos esperar. Não foi para isso que fomos feitas, para esperar, minha filha?
Rosário concordou lentamente.
Voltaram todas para a mesa e foram aos poucos retomando a refei¬ção do pé em que a haviam largado. O peito de Caetana era aquecido por um novo calor. Refletiu que quando acabasse de comer, iria brin¬car um pouco com Leão e Marco Antônio, e contar-lhes que o pai ven¬cera mais uma batalha e que era um valoroso soldado.
Lá pelo meio da manhã, chegou D. Antônia, e Caetana releu para a cunhada a carta de Bento. D. Antônia ouviu as palavras do irmão com o rosto impassível. Eram boas notícias, sem dúvida. Haviam to-mado Porto Alegre. Ela abriu um tênue sorriso, ao qual Caetana retri-buiu com gosto. Depois virou os olhos para os lados do campo. Um peão tentava domar um potro xucro; a terra vermelha, escalavrada pelas patas inquietas do animal, subia ao ar em violentas golfadas. O peão resistia, sabia que tinha de ter mais paciência do que o cavalo, sabia que venceria o animal no cansaço. D. Antônia ficou contemplando o sutil espetáculo. Alguma coisa ardia em seu peito, um mau presságio talvez. Ou talvez, quem sabe, fosse a velhice. Sim, estava ficando ve¬lha, e os velhos, todos sabiam, esperavam sempre pelo pior.
Resolveu afogar aquela angústia.
— Caetana — pediu ela —, me faça a gentileza de mandar uma criada me trazer um mate, por favor... Vim cavalgando lá da estância e, não sei, acho que o pó me entrou pelos pulmões. Estou meio seca por dentro.
Caetana dobrou a carta com todo o cuidado, guardando-a no abri-go do colo. Ergueu-se e foi para dentro da casa, pedir que Beata pro-videnciasse o tal mate.

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10

A tarde descia mansamente sobre o pampa, uma luz rosada, brilhante, abria suas asas sobre o paralelo 30, e tinha essa luz uma mágica. Tor¬nava as coisas mais belas, maiores.
Da janela da pequena biblioteca, onde entrara para pegar um ro-mance francês que estava decidida a ler, Rosário espiava a tardinha. Nem mesmo o seu espírito, tão afeito às cidades, aos prédios brancos, imponentes, às ruas, salões e átrios das igrejas, nem mesmo a sua alma, que amava a pompa e as coisas construídas pelo homem, podia passar imune àquela luz. As árvores, as madressilvas que subiam pelo corpo lateral da casa com suas flores lilases, tudo parecia ganhar outra di-mensão sob o toque misterioso daquela luz poente. Rosário apoiou o rosto com as mãos, deitou o corpo para a frente, sentindo que do chão emanava aquele cheiro de terra, de final de dia, que entrava pelas na-rinas e ia acalmar as ânsias mais secretas de um vivente. Por um único segundo, uma fração mínima de tempo, teve raiva de si mesma e da-quela súbita paz. Não gostava do campo. Mas então alguma coisa afrou¬xou-se em suas carnes, um cadeado qualquer rompeu-se, e ela se entregou àquele gozo simples. Desde menina, não apreciava assim um entardecer.
Pelo campo, uns últimos peões troteavam, findavam as lides do dia. Logo, as primeiras estrelas, as mais brilhantes de todas, surgiriam no céu. Os peões fariam o fogo, poriam um bom naco de carne a assar. E então um deles puxaria de uma viola, talvez um daqueles indiáticos, como Viriato, que cuidava dos cavalos do seu pai, traria para a roda uma flauta e, com sua música triste, encheria de presságios a noite.
Rosário deu as costas ao entardecer, já recuperava o seu senso, o sol se punha lá fora e era só isso: um sol morrendo, mais um dia, al¬guns homens fedendo a cavalo e suor que voltavam para a casa, e ela ali, perdida no meio daquele pampa infinito, sob aquele céu imutável, à espera de um destino que nunca vinha. Pensou no pai e na promessa que lhe havia feito, de levá-la à Europa quando completasse dezoito anos. Bem, estava já com dezenove, tinha-os feito havia pouco menos de um mês, e o pai lhe havia dito que deviam esperar, que agora coisas mais urgentes sucediam, negócios sérios, de guerra talvez, e que suas obrigações de rio-grandense, de gaúcho dos pampas, de estancieiro e homem de palavra impeliam-no a ficar e a lutar. Assim, o pai dera por findo o seu maior sonho. Quando as coisas serenassem, poderiam ou¬tra vez pensar na viagem, em Paris, em Roma, nos navios elegantes, nas casas de chá e nas modas chiques. Mandara-a então para a estân¬cia da tia com um beijo na testa, pedindo que se comportasse bem e que zelasse pela mãe e pelas irmãs.
Ela olhou pela janela. Agora um manto vermelho ardia lá fora.
— Que se ponha esse maldito sol! — gritou, com raiva.
Sabia que nenhuma das tias, nem a mãe, a ouviriam. Estavam na varanda, aproveitando os últimos momentos do dia. Fazia pouco que o homem de Bento ganhara a estrada rumo a Porto Alegre, com duas cartas de Caetana na guaiaca, mais os bilhetes que D. Ana e sua mãe tinham enviado aos seus próprios maridos. E as mulheres, nesse mo-mento, deviam estar caladas, pensativas, saudosas.
Pensou nas irmãs e na prima Perpétua; havia algo que a diferia das outras, e era, ela tinha certeza, uma certa finesse. Perpétua era bonita, claro, mas não tinha a mesma elegância de Caetana, nem seu porte de rainha. E Manuela? Manuela também tinha graça, mas era calada, pensativa, que homem se apaixonaria por uma criatura assim, de tão poucas palavras, estranha? E era ainda muito moça, com seus misterio¬sos quinze anos. Mariana também tinha seus encantos — as mulheres da família sempre gozaram de certa beleza —, mas era mais dolente, gostava do campo, estava feliz na estância, em companhia das outras. As três poderiam esperar esta guerra, e mais outra e outra ainda, mas e ela? Ela estava madura para os salões, valsava elegantemente, tinha talentos sociais. Recordou um oficial do Império, um jovem de vinte e quatro anos, com quem valsara seguidas vezes num baile em Pelotas, fazia pouco tempo. Chamava-se Eduardo. Ah, e quantas graças lhe dissera... Que era digna, com seu porte delicado, seus cabelos da cor do ouro, de valsar nos salões do imperador, de quem por certo ganha¬ria todos os favores. Eduardo Soares de Souza, assim se chamava o rapaz, tinha belos olhos verdes, serenos. Imaginou que ele deveria es¬tar fazendo cerco a Porto Alegre, que lutaria contra os rebeldes, con¬tra seu tio Bento, contra seu próprio pai e seu irmão, Antônio. E teve raiva, então, não do oficial tão terno e romântico que lhe fizera tantos galanteios, mas do pai, da barba negra e espessa de Bento Gonçalves, teve raiva do charque, do sal, de todas aquelas pequenezas que agora a faziam sofrer. E rezou uma Ave apressada por seu querido Eduardo. Se Deus quisesse, se Nossa Senhora rogasse por ela, logo estariam ambos valsando num salão, num salão elegante e rico, repleto de damas e de gentis cavalheiros. Quem sabe até na Corte, quem sabe até na Corte...
A noite começava a derramar lentamente as suas sombras. Ela sen¬tou na poltrona de couro negro e ficou olhando a escuridão descer sobre a peça, reduzindo os dourados de antes a simples sombras cotidianas; os livros na estante eram agora pequenos vultos tristonhos e sem nome, apertados naquele móvel, à espera de que alguém os salvasse dali.
Correu os dedos longos pela capa do volume que segurava. Achou muito bonita a escrita das páginas, que agora apenas adivinhava, por causa da penumbra. No corredor, ouviu os ruídos das negras passan¬do. Estavam acendendo os lampiões, espalhando os candelabros. Um toque leve na porta.
— Entre. — Sua voz saiu desprovida de paciência.
Da rua vinha uma cantoria distante. Ela pensou nos mestiços sem camisa, em volta do fogo. Sentiu um certo asco.
— Quer luz, sinhá? — Viriata olhava-a com seus olhinhos miú¬dos. Preta, mal podia ser divisada, era quase uma dentadura branca lhe sorrindo.
— E por que eu haveria de querer ficar no escuro, criatura?
— Adesculpa, sinhá... — Viriata fez uma mesura desengonçada e tratou de acender os lampiões de querosene. — Dá licença — pediu, e saiu ventando da sala, porque tinha um certo receio dos olhos frios daquela mocinha pálida.
A luz morna aquecia a peça. Rosário decidiu-se a ler um pouco. Faltava ainda um pouco para o jantar, e muito teria de esperar pelo sono. Abriu o livro, acarinhando o papel macio, papel europeu. Co-meçou a ler com certa dificuldade, mais adivinhando do que com-preendendo a narrativa, mais saboreando o som misterioso das palavras do que o seu sentido.
Principia a soprar um vento lá fora, um vento que traz cheiro de flores e de descampado. Pela janela aberta entra uma lufada que faz tremer a chama dos lampiões.
Rosário ergue os olhos azuis.
A parede branca está a sua frente, a estante de mogno, rente à parede. Um frio de gelo invade Rosário. Suas mãos brancas estão des-maiadas sobre o livro, mais brancas ainda, como pombas sonolentas
Seus olhos azuis vêem, encostado à estante, o vulto do jovem ofi-cial. Ele não se mexe. Uma bandagem ensangüentada cobre sua testa, e ele está pálido feito as mãos de Rosário, feito a parede que segura a estante. Está lívido, mas sorri. Pela janela aberta, vem o cheiro de mato, o cheiro de noite, de sonho. O soldado veste um uniforme azul, tem o peito coberto de medalhas. Na verdade, Rosário só percebe isso ago¬ra: não é um soldado, é um oficial. E sorri. Tem uns olhos verdosos e febris, e uma boca fina, bem delineada no sorriso estático. Ele suspira. O cheiro de flores torna-se mais forte, quase insuportável. De muito longe, cada vez mais baixo, vem a música dos peões.
Rosário de Paula Ferreira tenta mexer-se, mas suas mãos repou¬sam sobre o livro, alheias a qualquer vontade. Um grito prende-se à sua garganta, mas não sai. Os olhos azuis se arregalam de pavor.
— Tienes miedo?
A voz do homem à sua frente parece vir de muito longe, e é quente e suave, mansa feito uma flauta daquelas fabricadas pelos índios. Uma flauta doce.
— Tienes miedo, Rosário?
Não, ela quer dizer, não tem medo. Está assustada, seu corpo não a obedece, o cheiro de flores a sufoca, um homem entrou no gabinete sem que fosse convidado, um estranho, um jovem estranho, é verda¬de, um belo oficial de algum exército desconhecido que lhe fala em castelhano. Não, temer não teme, pensa em dizer isso, mas sua boca permanece muda.
O jovem oficial parece mover-se, no entanto seu vulto permanece encostado à estante. Brilham seus olhos de selva, brilham de febre. Ele tem um ferimento sério na cabeça. É bom que chame D. Ana... D. Ana conhece as ervas, poderá ajudá-lo, ou as negras. Sim, as escravas têm boas receitas para essas coisas. Rosário quer dizer-lhe que irá buscar ajuda. São de posses, podem mandar trazer um médico de Pelotas. Se vier a galope, chega ainda na madrugada, cuida do ferido, troca a sua bandagem suja, sangrenta, tira a febre daqueles oblíquos olhos ver¬des. Tenha calma, oficial, quer dizer, mas não diz. "Tienes miedo?", a pergunta sem resposta parece pular pela peça. Responda, responda. Mas Rosário não consegue responder. Lágrimas assomam aos seus olhos. Ela quer chamar a mãe, quer chamar D. Ana, quer chamar Rosa, que dizem boa benzedeira.
Faz um esforço descomunal, todas as células do seu corpo, juntas, na única ordem de erguer-se. Agora está em pé. O livro escorregou para o chão, caiu desconjuntado, páginas abertas. Rosário nem pensa mais no livro. Tem os olhos fitos no oficial, que ainda sorri. Atravessa a pequena sala, está tremula. "Vou chamar D. Ana", é o que pensa. Está lívida. Recostado na estante, o jovem a fita. A bandagem agora está empapada de sangue. "Tienes miedo...", a voz dele agora soa afir¬mativa, triste, e ecoa nos ouvidos de Rosário, enquanto ela sai em cor¬reria desabalada pelo corredor.
Quase derruba uma negra pelo caminho.
Chega à sala. D. Ana, Maria Manuela e Perpétua estão por ali, as outras andam lá para dentro. D. Ana tira os olhos do bordado e vê a sobrinha parada no meio da sala; ela treme e tem o rosto branco feito a geada. Ela tem um brilho estranho nos olhos azuis.
— O que foi, menina? — D. Ana fita a sobrinha. As outras tam-bém estão olhando Rosário.
— Está doente, minha filha? — Maria Manuela vai abraçar a fi¬lha mais velha. Toca-lhe a fronte, está febril.
Rosário desvencilha-se da mãe. Está olhando fixamente para D. Ana, e diz:
— Tia, vem cá comigo. Tem um moço lá no escritório, está muito ferido. Deve ser coisa de bala.
As mulheres se alvoroçam. Beata, que estava por ali arriando as cortinas, faz o sinal-da-cruz. Será que já começou? Gente ferida che-gando na casa?
— Como isso, menina? Um homem baleado? Vamos lá agora! — D. Ana ergue-se e toma a sobrinha pela mão. Tem os olhos preocupa¬dos, mas está serena e decidida. Será que estão guerreando por ali, será?
Vão em procissão pelo corredor. Perpétua fica imaginando se o soldado é jovem e bonito. Sente pena, sente medo. Rosário tenta con-trolar os passos, quer é sair correndo porta afora, fugir dali, voltar para Pelotas. Esquecera de dizer para a tia que o moço fala castelhano, mas não é importante. Está ferido, muito ferido. Deve arder em febre, e é tão garboso.
D. Ana abre a porta do escritório com o coração a saltar-lhe pela boca. Corre os olhos pela pequena peça: está tudo calmo, os livros ar-rumados na estante, a cadeira no seu canto, a escrivaninha de Paulo com o tinteiro e os papéis. As cortinas tremulam ao sabor da brisa campeira. Não tem ninguém ali.
— Não tem ninguém aqui — diz, surpresa.
— Mas tinha, tia. Eu juro.
Rosário tem os olhos arregalados. Toca na estante, bem onde o homem estava encostado. Ele ficara ali uns bons minutos, fitando-a com seus olhos verdes. E sangrava.
— Minha filha, o que é isso? — Maria Manuela está confusa. A filha parece estranha, doente. — Tinha mesmo um homem ferido aqui?
Rosário derrama-lhe um olhar ardido, lacrimoso.
— Tinha um moço aqui! Eu vi, eu juro! Estava muito ferido, com uma bandagem na cabeça, coitadinho... Sangrava muito... Acho que vai morrer — suspira. — Ele falou comigo, tia Ana.
D. Ana pega a sobrinha pelos ombros, delicadamente. Faz com que ela olhe dentro dos seus olhos, dos seus olhos negros como os de Ben¬to Gonçalves, dos seus olhos firmes e bondosos.
— Falou o quê, Rosário? Diz direitinho, menina... Se tem um ho-mem aqui, seja lá quem for, temos que encontrá-lo.
Rosário se derrama nos olhos da tia. O homem falara com ela. Ti-nha voz doce e olhos tristes. Falara em castelhano.
— Em castelhano? — D. Ana não entendia mais nada.— E disse o quê, menina?
— Perguntou se eu estava com medo... Só isso. Perguntou se eu tinha medo dele... — Rosário começa a chorar. — E eu não tinha, tia... Só fiquei assustada, juro, e não podia me mexer..
D. Ana troca um olhar de estranheza com a irmã. Maria Manuela abraça a filha, enquanto Perpétua espia pela janela: quem sabe o ho¬mem pulara para a rua? D. Ana leva todas para a sala, onde já apare¬cem Caetana, Manuela e Mariana. Numa casa de mulheres, as notícias correm rápido.
Rosário chora muito, diz que não está mentindo, tinha lá um oficial ferido, e era jovem. D. Ana sente pena da menina. Vai ver, está adoentada, pensou. Quem sabe a angústia fizera-lhe isso? Sim, vira muitas vezes as pessoas delirarem de angústia... E Rosário não era forte, não herdara a solidez dos Gonçalves da Silva, era frágil, delicada.
D. Ana vai para o lado da sobrinha e lhe acaricia os cabelos. Sua voz é muito doce, quando diz:
— Fique sossegada, Rosário... Vou mandar o Manuel e uns ho¬mens darem uma olhada por aí. Se o moço fugiu, não deve estar longe. Traremos ele para a casa e vamos cuidar do seu ferimento, está bem? — Rosário concorda lentamente, e seu choro esmaece um pouco. — Agora, menina, é melhor que vosmecê se deite... Sua mãe le leva para o quarto. Depois, eu mando a Beata le levar uma sopinha... Pode dei¬xar que a gente cuida disso, está bem?
— Ele estava muito ferido... — é o que sabe dizer. Maria Manuela estende a mão:
— Vem, filha. Vamos deitar um tantinho...
As duas vão saindo da sala. As outras mulheres estão ao redor de D. Ana, cheias de perguntas no olhar.
— Manda chamar o Miguel e o Zé Pedra, Beata. E diz para eles virem rápido. — A voz de D. Ana ecoa pela sala.
Beata sai correndo, arrastando as chinelas de pano.

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11

Jantaram numa muda expectativa. Rosário contara uma história es¬tranha. Se um castelhano estava ferido por aquelas bandas, devia ser briga de bolicho ou coisa parecida. Não estavam em guerra com o Prata, estavam começando uma guerra contra eles mesmos... Mas o que faria um oficial de fora por ali?
— Ela dormiu rápido.
Maria Manuela chegou atrasada para o jantar. Ficara à cabeceira da filha, zelando seu sono. Tinha feito com que tomasse um chá de folha de tília, para acalmar os nervos.
— Se acharem esse homem, temos que avisar o Bento. Ele nos dirá o que fazer — Caetana duvidava muito que Manuel voltasse com al-guma notícia, aquela história estava mal contada.
— O que eu não quero é ver essa menina se adoentar — disse D. Ana. — Se o tal aparecer, tratamos dele, depois o enviamos para Porto Alegre. Mas se o Manuel não o encontrar por aí, deixem comigo; eu conto uma história para sossegar Rosário e não se fala mais nisso.
D. Ana comia calmamente. No fundo, sabia bem que nenhum castelhano andava por aquelas terras. Talvez a menina estivesse ape¬nas assustada demais cora tudo, com a perspectiva de uma guerra.
Manuela estava em silêncio. Pensou na irmã frente a frente com o tal oficial. Não duvidava de nada, quem sabe não fora uma briga de amor, um duelo? Quem sabe, o coitado, ao ver as luzes na casa, não fora pedir um alento? Não entendia era aquela fuga assim, antes do socorro. Ele podia até morrer no mato, as noites ainda estavam muito frias.
Ficaram ali, sem respostas. Lá fora começava a soprar um vento inquieto que fazia cantar as árvores do capão. Talvez chovesse duran¬te a noite.
Depois da janta, quando Caetana já tinha se recolhido para ver as crianças pequenas, foi que Manuel e Zé Pedra voltaram. Suas botas estavam embarradas, e as roupas, úmidas; tinha começado a cair uma chuva fina e gelada. D. Ana foi ter com os dois na cozinha.
— Não encontramos nada, D. Ana. — Manuel já se arrumava para comer. — Le digo que vasculhamos tudo, até o rio. Fomos até na es¬tância da Siá Antônia, e nada. Se esse moço passou mesmo por estas bandas, então se escafedeu como o diabo.
— Está bem, Manuel. Mas não me comentem essa história com ninguém, nem com a peonada.
Zé Pedra mastigava furiosamente o feijão com arroz. D. Ana sabia que da sua boca não sairia uma palavra, não era à toa que o chamavam de Pedra: era um túmulo para guardar segredos. Manuel tirou o chapéu de barbicacho e sentou à mesa, pedindo licença à patroa.
— A senhora acha mesmo que tinha castelhano ferido por aqui? — perguntou Manuel em voz baixa.
D. Ana sorriu. Estava enrolada num xale de lã preta e parecia menor e mais frágil do que quando estava ataviada com suas saias e rendas.
— Não acho nada, Manuel... Minha mãe sempre dizia que em cabeça de moça e vespeiro a gente não deve remexer. — Um cheiro bom de lenha queimando ocupava o ambiente. — E a mocidade é uma época esquisita mesmo, o melhor é deixar passar, no más... — Foi saindo da cozinha. — Buenas noches.
— Buenas, patroa — responderam em coro o negro e o capataz.
Em seu quarto, Rosário dormia um sono agitado onde os olhos ver-des e febris do oficial a perseguiam como borboletas. Acordou no meio da noite, e o silêncio aterrador da madrugada campeira encheu-a de medo. Enrolou-se na coberta e, vencendo um pânico ancestral, atra-vessou o corredor quase às escuras e foi bater no quarto da mãe.
— Posso dormir com vosmecê?
Maria Manuela sorriu no escuro. Foi para o lado, abrindo espaço para a filha e, com a voz pastosa de sono, disse apenas:
— Deita aqui, meu anjo. Dormiram de mãos dadas.

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12

Estância da Barra, 2 de dezembro de 1835.
Ninguém soube explicar o causo do tal castelhano que viera ver Rosário naquele dia, nem nunca mais tocou-se no assunto. Lembro que, no dia seguinte, D. Ana trancou-se com ela no escritório e ali ficaram um par de horas. Rosário deixou o encontro com os olhos ardidos de choro, mas D. Ana acalmou-nos a todas com sua voz de certezas.
— Eu também já fui moça. Isso passa logo... Quando os homens voltarem, faremos uma baile. Até lá, Rosário terá esquecido essa his¬tória toda.
E foi assim. Não se falou mais no causo.
D. Antônia também pouco fez do acontecido. Tinha lá seus pensa-mentos e suas certezas. Preocupava-se com gente de carne e osso. Olhou-me, quando acabei de lhe narrar o encontro que a mana tivera, e me disse: "Vosmecê tem bom senso, Manuela. Esqueça esse assunto. Temos aqui mesmo muitos rio-grandenses que de nós necessitam... E quanto à sua irmã, deixe que fique assim... Essas tolices se curam com o tempo."
Mas, nos dias subseqüentes, Rosário tornou-se mais calada e es-quiva, até hoje tem sido assim... Passa lendo por tardes inteiras trancada no escritório do tio, e é como se lá fosse um canto só seu, um outro país, que ela freqüenta por uma graça divina. Às vezes, passa muito tempo ao toucador, penteando os cabelos, trançando-os, até mesmo se lava e se perfuma para esses momentos... A mãe anda cabreira, coitadinha, mas tem lá outras angústias. Parece que Antônio se feriu numa escaramuça na Azenha, um imperial o teria cortado com a adaga. O pai e Bento se apressaram em nos escrever, dizendo ambos que fora coisa pouca, que Antônio estava bem e já curado. Apenas um arranhão no ombro, disseram ambos, que lhe custara uma noite de febre; com umas compressas e paciência, já fora sanado. Mas a mãe não acredita, quer ver o filho com os próprios olhos. Sonha que Antônio está muito ferido, gangrenando até, e acorda em prantos, os olhos riscados de veias vermelhas. D. Ana tem de servir-lhe um chá, e depois disso gasta mui¬to tempo para demovê-la de tomar uma sege e ir para Porto Alegre por estas estradas, atrás do seu Antônio.
Ontem chegou um próprio trazendo extensa carta de Bento Gon-çalves. Como acontece sempre, Caetana leu-a na sala, em voz alta, para todas nós. Contava a carta que o novo presidente da província, indica-do pelo regente do imperador, chegara no dia anterior ao Rio Grande, vindo do Rio de Janeiro. Ouvimos apreensivas a voz de Caetana so¬prar o seu nome: José de Araújo Ribeiro. Filho de uma família daqui, um rio-grandense contra outros. E fiquei pensando se seria esse ho¬mem, esse sulista imperial, que traria em sua esteira todas as desgra¬ças que enxerguei. Mas um nome? O que é um nome apenas, um indício de alguma sina? Será que nossos nomes traçam o futuro que nos cabe, será que Bento Gonçalves da Silva, quando ainda era um bebê, ao re¬ceber na pia batismal esse nome que lhe foi dado, recebia também a herança de comandar este povo? Será de Araújo Ribeiro a mão que empunhará a espada da nossa desgraça?
Bento Gonçalves virá ver-nos em breve. Caetana chorou ao ler esse trecho. Choramos todas. Minha mãe ficou imaginando se o irmão tra¬ria Antônio para estar com ela... Não sabemos. Mas tio Bento virá, e isto já nos alegra. Com ele, notícias; com ele, verdades. Aqui nesta casa, o tempo passa lentamente, embora a primavera tenha trazido novas cores a tudo, e os campos estejam floridos e belos como um salão pre-parado para o baile. Apenas Rosário, imbuída do seu novo distanciamento, pareceu não se alegrar com a chegada de Bento Gonçalves: talvez nem ouvisse direito o que Caetana nos lia.
Fugi pelos fundos, enquanto as mulheres permaneciam na sala co-mentando a carta e seus pormenores. D. Antônia estava conosco, pois mandaram buscá-la na estância para que também tivesse notícias: sua voz pausada e firme ouvia-se sobre todas as outras, e ela tomava pro-vidências para esperar com glória o irmão coronel.
No quintal, em torno do mate, Manuel, Zé Pedra e o vaqueano que trouxera a carta do coronel Bento trocavam frases esparsas enquanto sorviam a bomba, cada um a seu turno. Aqui não se fala muito, a gente do Rio Grande tem o peito fechado como um cofre. E um jeito de se alegrar para dentro, diz sempre D. Ana, quando falo da sisudez de nós todos, pois até eu tenho esse espírito controlado, essas palavras medi¬das que às vezes me deixam a boca com custo.
No entanto, apesar dos longos silêncios de chupar o mate, os ho-mens pareciam muito contentes da vida, e tinham um certo brilho de orgulho nos olhos de sobrancelhas cerradas. E eu, fingindo que ia buscar um dos cachorrinhos de Nega, a cadela que deu cria na semana passada, pude ouvir da boca do mensageiro:
— Porto Alegre é nossa, estou les garantindo. Eu vi os imperiais fugirem como passarinhos. Logo teremos todo o Rio Grande.
Um calor de júbilo tomou-me. Escolhi um dos filhotes a esmo — a alegria até me turvava os olhos —, estavam todos numa grande caixa cheia de panos, Nega dormindo exausta, e tomei-o no colo. O bichi¬nho tinha uma cara linda, e eu estava contente.
— Vosmecê vai ser meu, cãozinho. E vai se chamar Regente.
Regente agora anda no meu encalço, mas D. Ana não o quer na casa. Detesta bichos pelas suas salas, porque diz que trazem doença e pulgas. Pedi, e Mariana deixou que ele ficasse em nosso quarto, contanto que não chorasse. Regente não chora, sabe bem o que lhe convém. Enquanto escrevo estas linhas, ele está aqui ao meu lado, olhando-me com seus olhinhos pretos e alegres: é uma bolinha gordu¬cha e luzidia, de pêlo baixo, grosso e negro, tem a cabecinha pequena e uma mancha branca escorre de entre seus olhos até o focinho. Tem estado comigo todos estes dias, e é bom ficar ao seu lado, porque não me pede assuntos, segue-me apenas. Tomamos banho na sanga, on¬tem à tarde, Regente nadou como se fosse um peixe, depois dormiu longas horas, deitado sobre a colcha velha que lhe serve de cama.
Amanhã, Bento Gonçalves chega à estância. As mulheres estão todas em polvorosa. D. Ana foi pessoalmente fazer a pessegada de que o irmão tanto gosta. E as negras não param, andam de um lado a ou¬tro, areando a prataria, arrumando a casa como um brinco, trocando as toalhas das mesas, arejando as cortinas de veludo, lavando de esco¬vas o chão da salas. Até os cavalos foram escovados, e a peonada ga¬nhou de D. Ana mate e carne para um assado. Estamos quase em festa, como se fosse Natal... Espero que esta noite não nos seja longa.
Manuela.

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13

O dia ainda não tinha clareado de todo, quando um vaqueano veio avisar à negra Beata: o coronel Bento Gonçalves, mais um grupo de cavaleiros, chegava na estância. Com eles, vinha Antônio, o filho de Maria Manuela, e usava no braço uma tipóia ou coisa que o valesse.
— Ainda não atravessaram a porteira — disse o gaúcho, coçando a barba. — Mas usted já pode avisar D. Ana: os homens chegaram para o mate da manhã.
Beata deu um pulinho de contentamento, abriu um riso largo e saiu ventando para dentro da casa.
Um sol tímido e dourado rasgava as nuvens da manhã, o passaredo cantava nas árvores, e o cheiro de mato, que o sereno carregava, ainda se fazia sentir naquele princípio de manhã de dezembro. O campo já tinha ares de verão. Ao longe, o gado pastava. O peão deu uma boa olhada em tudo — estava na mais perfeita ordem, seu Bento iria aprovar o andamento das coisas —, depois deu uma virada com o cavalo e saiu prós lados do celeiro. Manuel andava por lá, arrumando umas monta¬das. Precisava avisá-lo da chegada do coronel.
A casa despertara mais cedo. De cá e de lá, as escravas andavam carregando bacias com água, toalhas, panos de fralda. Beata foi dando a notícia para todos com quem cruzava no corredor. Chegou na cozinha. Zé Pedra tomava um mate, encostado na soleira da porta.
— O coronel Bento chegou.
A voz de Beata era esganiçada feito taquara. O negro forte e espadaúdo não moveu um músculo do rosto. Acabou de sorver o mate bem amargo e retrucou em voz baixa, como falava sempre:
— Pois tá fazendo o quê aí, sua negrinha da peste? Vai avisar D. Ana agora mesmo, em vez de ficar por aí botando alarido na negrada.
Beata ventou cozinha afora. Todos tinham medo de Zé Pedra, que, diziam, tinha sido feitor lá para os lados de Cerro Largo, e que era de toda a confiança de D. Ana. Também falavam que era alforriado, que comprara sua liberdade, mas Zé Pedra não comentava sua vida, nem para mentir, nem para desmentir a boataria.
Beata saiu arrastando as chinelas pelo corredor. Na última porta, parou, ajeitou as saias. Bateu de leve. A voz de D. Ana se fez ouvir:
— Entra, Beata. — Conhecia os passos ligeiros e o jeito afobado da negra.
D. Ana acabava de aprontar-se. Milú prendia os seus cabelos no alto da cabeça, e Beata viu com gosto o vestido novo, enfeitado com fitas de veludo. Limpou a voz e, toda faceira, disse:
— O coronel Bento está aí. Deve está apeando, lá nos fundo. Veio com mais uns soldado. Seu Antônio tá com ele.
— Graças a Deus — disse D. Ana, abrindo um sorriso.— Vamos logo com isso, Milú. Quero ir ver meu irmão.

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14

Bento Gonçalves era um homem alto, de barba cerrada e negra, e poses de fidalgo. Não aparentava os quarenta e seis anos que tinha, porque em tudo emanava energia, até nos menores gestos, mas era comedido, compenetrado, confiável. Por isso era o homem forte da revolução, um gaúcho, no más. Corajoso e sereno. Usava naquela manhã o dólmã azul, bombachas escuras, o chapéu de barbicacho e, presas nas botas de couro negro, suas esporas de prata, muito bem areadas, brilhantes. O lenço vermelho de seda estava preso ao pescoço.
Desceu do alazão, fez um carinho no lombo do animal e saudou com alegria o capataz:
— Como le vai, Manuel? Por estas terras está tudo bien?
— Tudo em ordem, coronel. A primavera tem sido boa. Um cava¬lo xucro descadeirou um dos peões semana passada, mas o homem já está andando de novo, e já demos um jeito no bicho.
— Bueno — respondeu Bento Gonçalves.
João Congo, o escravo de confiança do coronel, veio e pegou o alazão. Bento sorriu para o negro. Estava contente de estar em casa e rever sua Caetana e os filhos pequenos. Aspirou o ar que cheirava a jasmins e sentiu uma vontade louca de tomar um banho de sanga e de passar a tarde toda numa rede, olhando as nuvens correrem no céu. Ficara dois meses em Porto Alegre, naquele palácio sisudo e escuro, repleto de veludos e criados de libré. E agora estava ali, uns três dias de calma e de campo le fariam um bem danado.
Antônio de Paula Ferreira, filho mais velho de Maria Manuela, tocou no ombro do tio com a mão esquerda. O braço direito vinha imobilizado numa tipóia encardida de pó.
— Aspirando o ar do campo, tio? Está um belo dia, não é?
O rapaz abriu um riso contente. Tinha límpidos olhos verdes e a pele clara que contrastava com o preto dos cabelos revoltos.
— E bom estar em casa, Antônio. Ainda mais com um céu des¬ses... Vosmecê não vai lá dentro aquietar o coração da sua mãe? Ela me escreveu umas dez cartas, ou más, pedindo que eu le trouxesse comigo.
Antônio sorriu em resposta. Entregou sua montaria para Zé Pedra e sumiu cozinha adentro, chamando por Maria Manuela com voz ale¬gre. Bento Gonçalves achou graça do sobrinho. Agora o ombro estava curado, mas andara feio; ainda bem que em Porto Alegre havia médicos bons para atendê-lo. Antônio e uma brigada pequena tinham cruzado um grupo de imperiais dispostos à batalha. Um deles reconhecera no moço alto e garboso, montado no cavalo branco, o sobrinho do gene¬ral Bento, e tentara a todo custo vará-lo com a lança. Fora uma escara¬muça rápida, mas os imperiais eram em maior número, e os rebeldes tiveram bastante trabalho. Horas depois, Antônio aparecera no palá¬cio com o ombro tinto de sangue. A lança do maldito entrara fundo, fizera estrago. Bento Gonçalves não queria trazer para casa o rapaz sem um braço ou coisa parecida. Ia ser mui triste.
Dois outros homens desmontaram. Um deles era um italiano alto, de traços delicados, pele alva e modos fidalgos. Na verdade, era um conde, um conde fugido da Itália, agora secretário mui valoroso de Bento Gonçalves. Chamava-se Tito Lívio Zambeccari. Tito entregou a montaria para um escravo.
— Meu caro Tito, hoje vamos comer do bom e do melhor. Nada como estar em casa. Usted sinta-se à vontade aqui, amigo. — Bento Gonçalves gostava daquele italiano de gestos corteses e cultura impressionante.
O italiano sorriu.
— Quem não ficaria à vontade sob este céu, coronel? E este chei¬ro de pão que vem de lá de dentro? Parece um sonho.
— Não há nada de sonho nesse cheiro, le garanto, Tito. Espere para ver as comilanças que minha irmã mandou preparar. Ela acredita que os guerreiros comem por dez.
O último a desmontar era Pedro, filho mais novo de D. Ana. Era um moço de vinte anos, de pele morena e olhos escuros. Falava pouco e era discreto, mas se mostrara um valoroso soldado. Entregou o cava¬lo para Manuel, e este sorriu para o patrãozinho.
— Seja bem-vindo, seu Pedro. Tem aí uma égua recém-domada para o senhor dar umas voltas.
— Macanudo, Manuel. — Pedro deu um abraço no capataz que conhecia desde menino.— Vou lá dentro ver minha mãe.
Não precisou.
D. Ana e Caetana apontaram na porta da cozinha, sorridentes.
Caetana estava bela, usando um vestido azul muito claro, que fazia seus olhos arderem de brilho, os cabelos presos numa trança lustrosa. Viu o marido parado no meio do terreno, dizendo qualquer coisa a João Congo. Não conteve um grito:
— Bento!
Mal tinha dormido naquela noite. Acordava de pouco em pouco, suada, nervosa, para ver se já tinha amanhecido, se ouvia o barulho dos homens chegando, mas sempre era a noite apenas, com seus pios e seus silêncios de orvalho, e seus gritos de corujas e morcegos. Levan¬tara antes do sol.
Agora correu para os braços do marido. O rosto de Bento Gonçalves adquiriu uma doçura nova que brilhou nos seus olhos miúdos assim que ele viu a esposa. Abraçou-a com força, quase escondendo-a sob seu corpo forte.
— Minha cara... Vosmecê está tão hermosa, mais do que eu me lembrava!
Caetana riu de contente. Fez um carinho na barba daquele coronel cheio de sonhos.
— E vosmecê está bien? Tem se cuidado como le pedi? Tem co-mido, dormido o bastante, ou só pensa em batalhas?
Bento riu com força.
— Tenho estado bem longe de pelejas, Caetana. Sentado atrás de uma mesa, como se fosse um juiz. Ainda agora, venho até aqui para encontrar este senhor Araújo, neste baile em Pelotas. Esta guerra ainda não se fez com batalhas, Caetana.
— Assim está bien, por enquanto — disse a uruguaia de olhos esmeraldados. — Vamos lá para dentro, que a mesa está posta e cheia de quitutes. Ah, e seus filhos estão loucos para le ver.
— Vamos a eles, então. — E o coronel saiu pisando firme, de bra¬ço dado com Caetana.
Na cozinha, abraçou e beijou D. Ana. Vinham da sala o som de risos e a gritaria dos meninos que brincavam de guerra com Antônio e Pedro, correndo em volta da mesa comprida.

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15

Rosário ouvia com muita atenção as histórias contadas pelo conde. Encantava-a aquele brilho que ele tinha nos olhos claros, as maneiras elegantes de salões. Tito Lívio Zambeccari tinha uma voz pausada e morna. Rosário imaginou-o em seu castelo na Itália. Pois sim, se era conde, deveria ter um castelo.
Estavam todos à mesa. Maria Manuela cercava Antônio de atenções, satisfeita de ver o filho com cores. Já o tinha posto num longo banho de tina, a bandagem no braço direito era outra vez alva. Fizera-lhe também um prato farto, com tudo o que ele mais apreciava comer. A cabeceira da mesa, Bento Gonçalves falava:
— Pois o homem chegou à província faz quase uma quinzena de dias. E ainda não me saiu do Rio Grande. Se não for a Porto Alegre assumir o seu posto, a coisa fica feia. Estamos parados, esperando. Mas se Araújo Ribeiro não se dignar a nos reconhecer, haverá uma guerra.
D. Ana trocou um longo olhar com o irmão, onde leu alguma an-gústia, mas seu rosto era firme e orgulhoso, o rosto de um comandan¬te. As coisas não estavam no pé que ela imaginava, nem tudo estava certo ainda. Os imperiais resistiam ao movimento. E quem era este Araújo Ribeiro, e onde estava vivendo? Formulou estas questões em voz alta. Bento Gonçalves sorriu e pensou por um instante, escolhen¬do boas palavras para sua resposta.
— José de Araújo Ribeiro está morando no brigue Sete de Setem¬bro, Ana. Nem pisar neste chão o homem pisa. Mas amanhã nos en-contraremos... Não é à toa que irei à festa do Rodrigues Barcelos. Quero ver o que Araújo me diz, na cara. Quero ver quais são as suas inten¬ções. Onofre e os outros ficaram a postos, estamos bem organizados. Quero ver esse Araújo se meter a besta comigo 1
As mulheres arregalaram os olhos. D. Ana sorriu da efervescente for¬ça do irmão. O que tinha de ser, tinha de ser, pensou. Mas disse apenas:
— Vou mandar servir a pessegada.
O conde Tito abriu um leve sorriso de satisfação.
E o almoço prosseguiu num clima leve, de reencontro familiar. Manuela e Mariana notaram os novos risos no rosto da irmã. Desde o episódio do castelhano, Rosário não parecia tão contente. Não tirava seus olhos azuis do rosto aristocrático do jovem conde.

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16

D. Antônia chegou após a sesta. Recebera no dia anterior a notícia da vinda de Bento Gonçalves, mas passara boa parte da manhã envolvida com assuntos de gado, fechando uma venda, e só pudera deixar a Estância do Brejo à tarde. Tomara a charrete. Trazia consigo um cesto de laranjas frescas para os sobrinhos.
Encontrou Bento Gonçalves sentado na varanda, tomando um mate. Bento passara boas horas com Caetana, depois tomara um banho, ves¬tira a bombacha, as botas, a camisa branca, bem passada — como eram bons os cuidados femininos —, e agora estava ali, pitando o cigarro de palha que João Congo acabara de fechar. Ainda há pouco vira passar uma cabocla que trabalhava na casa, uma rapariga duns quinze, dezesseis anos, no mas, e estava pensando o quanto era apetitosa uma carne jovem daquelas, de moça virgem, que cheirava a coisa nova.
D. Antônia interrompeu esse seu devaneio.
— Que alegria têm os meus olhos, Bento!
Abraçaram-se com carinho. Bento Gonçalves da Silva tinha muito respeito pela irmã mais velha, boa de tino, estancieira das sábias, que tanto lhe recordava D. Perpétua com suas decisões bem pensadas, com sua voz calma, com as mesmas certezas de uma vida inteira. Falaram amenidades, falaram do campo, do gado, das dificuldades que se avi-zinhavam com a guerra. D. Antônia tomou o mate. A tarde começava a esmaecer em seu brilho. Os quero-queros cantavam. Manuela pas¬sou ao longe, cavalgando ao lado do irmão.
— Esses dois têm a mesma têmpera — disse D. Antônia.
— São Gonçalves de cima a baixo.— Bento ficou olhando os dois cavaleiros irem diminuindo de tamanho, duas pequenas manchas no horizonte. Os cabelos negros de Manuela balançavam ao vento como uma coisa viva. Bento sorriu. — Ela será uma boa esposa para Joaquim.
— Manuela tem a cabeça no lugar.
— E o coração? Usted sabe de algo? Afinal, estão todas aqui, du-rante esses meses. Sabe se ela quer o Joaquim?
D. Antônia passou o mate ao irmão. Viu as mãos calejadas, fortes, másculas agarrarem a cuia com facilidade extrema. A cuia sumiu man-samente entre aqueles dedos.
— Olha, Bento, saber eu não sei de nada. Manuela é de poucas palavras, vosmecê conhece os silêncios dela. Mas tem a cabeça no lugar, como eu disse. Por que não haveria de querer Joaquim, um moço tão garboso, rico, bonito? Quando Joaquim acabar a faculdade de medicina, os dois se casam, fique tranqüilo.
Bento Gonçalves sorriu. Mandou João Congo ir buscar mais água. Depois olhou a irmã no fundo dos olhos — era como se olhasse a si mesmo — e respondeu:
— Deixa, Antônia... Às vezes tenho esse cutuque. São bobagens de velho. Joaquim e Manuela serão um belo par, sem dúvida. Quando casarem, vou fazer uma festança como nunca se viu nesta terra.
O negro João Congo voltou com uma chaleira fervente. Tornou a encher a cuia do patrão. Antônia analisava o homem ao seu lado. Esta-va inquieto, alguma coisa dentro dele não se acomodava. Ela o olhou, recostado na cadeira, fitando o horizonte rosado do entardecer, mas era como se não o enxergasse, era como se Bento não estivesse ali, no seu sossego, na sua paz campeira. E viu então o que a inquietava tan¬to: dentro dos olhos de Bento, dos olhos negros e ávidos de Bento, um brilho de fúria ardia como uma chama.
O irmão virou-se de repente para ela.
— Antônia, quero que vosmecê saiba: se esta guerra estourar, vou necessitar de seus ajutórios.
— Pode contar comigo, Bento — a voz dela era firme. — Le disse isso no primeiro dia, pois repito agora.
— Bueno.
O conde apareceu em frente à casa. Vinha sorrindo, o rosto corado, satisfeito. Subiu os degraus da varanda. Bento Gonçalves ofere¬ceu-lhe um mate. Tito Lívio Zambeccari agradeceu, mas declinou. Na verdade, nunca se acostumaria com aquela beberagem amarga, com a bomba que sempre lhe queimava os lábios. Preferia um bom vinho, como italiano que era. Fazia muito tempo que não revia a sua Itália. Olhou aquelas terras planas, infinitas, recobertas pela grama verde, pensou nas terras do pai, tão diversas, escarpadas, mas belas, tão belas como só podem ser as coisas do passado. Sentiu um nó no peito.
— Se aprochega, Tito. Estamos aqui de prosa, aproveitando esta tarde bonita.
João Congo botou uma cadeira para o conde. Tito Lívio agrade¬ceu polidamente. D. Antônia simpatizou com o italiano de olhos cla¬ros; havia uma coisa nele que evocava romances, e no entanto parecia frágil, um tanto pálido. A voz maternal de D. Antônia se fez ouvir:
— O conde não quer o mate? Então vou mandar que tragam um suco de laranja bem fresco. São laranjas do meu pomar.
— Muito le agradeço, D. Antônia. — Tito sorriu timidamente. — Um suco me faria bem.
Bento fez um gesto de mão:
— Não se apoquente, Tito. Minha irmã tem esse jeito, cuida de todos.— E depois, mudando de tom: — Vamos combinar: amanhã saímos cedo para Pelotas. Vamos nós, mais Caetana e Congo. Depois do baile, voltamos, pegamos Antônio e Pedro, e rumamos outra vez para Porto Alegre. E agora que a coisa vai pegar fogo, Tito. Quero ver de que trigo é feito esse Araújo.

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17

Rosário esgueirou-se pelo corredor, como uma sombra. Não encon-trou ninguém, a não ser uma negrinha que varria a varanda dos fundos, assobiando qualquer coisa. Pensou no conde, um calor agradável su¬biu ao seu rosto. Onde estaria o conde àquela hora? Já tinha passado a sesta fazia tempo, será que estava cavalgando, conhecendo a estân¬cia? Talvez estivesse de prosa com o coronel Bento; sim, eles deviam ter muitos assuntos a tratar. Mais tarde, chamaria Antônio para um passeio de charrete, e então, sutilmente, perguntaria quem era aquele Tito, aquele conde de olhos azuis que estava tão longe de casa, um homem fino, que falava tantas línguas, perdido nessa terra, secretarian¬do um coronel. Sim, tinha muito o que descobrir do conde. Mesmo assim, não podia faltar ao seu encontro. A tarde caía, o calor levanta¬va-se do chão, o sol ia esmaecendo lá fora, dando descanso ao pasto e aos animais. Deviam ser mais de seis horas.
Rosário entrou na biblioteca e fechou a porta a chave. D. Ana não gostava que trancassem os cômodos. "Aqui não temos segredos a es-conder", era o que dizia. Mas D. Ana estava ocupada com as visitas, a última coisa que faria era procurá-la. Rosário fechou as cortinas, a penumbra tomou conta do pequeno aposento.
Assim está bom. Ele não gosta de luz. A luz fere os seus olhos.
Rosário sentou na poltrona, cruzou as mãos no colo e começou a esperar. Seu coração deu uma corrida dentro do peito.
Preciso ficar calma. Já me visitou outras vezes. Não há nada de errado nisso.
Fechou os olhos por um momento. Ao abri-los, ele estava ali. En-costado na estante, como o vira pela primeira vez. A bandagem em torno da testa estava rubra. Seus olhos verdes ardiam de febre e de amor. Ele sorriu, um sorriso doce. Estava muito cansado, já lhe dissera tan¬tas vezes... Rosário sentiu pena, sentiu amor, sentiu medo. Não medo dele, que já lhe era tão querido, mas de que lhe faltassem forças até para vir vê-la. Seu rosto estava branco feito papel, a boca delicada quase sem cor.
— Usted está bien? — A voz dele era um sopro nos ouvidos de Rosário, um sopro morno.
Ela enrubesceu. Baixinho, respondeu: "Sim, estou bem." Disse que estivera pensando nele, se ele viria vê-la naquela tarde. Afinal, tinham visitas. Sabia que não gostava de estranhos. "Lo conozco, Rosário", respondeu ele. "Hubiemos nos encontrado en la Cisplatina", e dizen¬do isso fez um esgar de dor.
Rosário quis erguer-se para tocá-lo, mas o oficial fez um gesto. "Está bien...", disse somente. Rosário viu que, de um instante para o outro, a bandagem tornava-se úmida de sangue. Por um estranho pressentimento, pensou na mão de Bento Gonçalves segurando a espada que rasgara aquela carne, que tornara tão pálido e fugidio aquele semblante que ela já começava a amar. Seus olhos arderam de lágrimas.
— Steban... — sua voz titubeava. — Steban, não fique assim... Eles estão lá fora. Vamos esquecê-los, não nos importam.
— Lo juras? — O verde dos olhos dele se acendeu. Rosário cogi¬tou se um dia poderia abraçá-lo, dar-lhe um beijo, valsar com ele num salão de baile.
— Juro, Steban... Fiquei a tarde toda esperando para estar com vosmecê. Não vamos deixar que meu tio estrague também isto.
O oficial sorriu. Alguma cor voltou ao seu rosto. Ele virou-se para a estante, procurando alguma coisa. Gastou assim alguns momentos, até que retirou dali um livro. Abriu numa página e, com a voz sussurrante, começou a ler um trecho para Rosário. Em seu espanhol morno e pausado, contava de uma noite sob um céu de estrelas. Rosário sus¬pirou e deixou-se levar. Lá fora, a noite derramava suas primeiras es¬trelas pelo céu de verão.

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18

Estância da Barra, 5 de dezembro de 1835.

Eles partiram ao alvorecer. Mesmo tão cedo, o calor já se fazia sen-tir. João Congo aboletou-se ao lado do cocheiro e abanou para nós com sua manzorra. Caetana olhou da janelinha, usava um vestido cla¬ro de viagem, mas, na mala, levava rico traje de festa. Vi meu tio Bento dizer-lhe: "Quero que estejas linda como nunca. Para que saibam quem somos."
Perpétua pediu muitas vezes à mãe para que pudesse acompanhá-los ao baile, dançaria com o conde, queria muito ir à festa, valsar, dan-çar a chimarrita, ver gente e ouvir música. Bento Gonçalves irritou-se. Chamou-a de tola, disse que não estavam de divertimentos, que tinha uma província às suas costas. Ia a Pelotas para resolver um assunto pendente. Perpétua saiu correndo da sala, acho que chorava. Isso su-cedeu ontem à noitinha, e a prima não esteve conosco ao jantar, nem foi à varanda despedir-se dos pais.
Os grilos cantam lá fora. Já é bem tarde.
Mariana ainda não veio para o quarto, deve estar conversando com Pedro e Antônio. É bom ter meu irmão conosco, mesmo que seja por pouco tempo. Antônio contou-nos coisas sobre o conde Zambeccari. Disse que ele fugiu da Itália, onde conspirava contra o rei. Que foi para a Espanha, para o Uruguai, e que agora estava aqui e era muito fiel a Bento Gonçalves. Rosário pareceu interessada no conde, fez perguntas, quis saber coisas pessoais. Antônio caçoou dela, disse que o conde Tito não era homem de romances. Gostava das idéias.
Existem outros homens por trás disso tudo, homens daqui do Rio Grande, cujos sonhos se assemelham aos de Bento Gonçalves, e ou¬tros ainda, que sonham com uma república. O coronel Antônio Netto de Souza, de Bagé, Onofre Pires, primo de minha mãe, o major José Gomes de Vasconcelos Jardim, o major João Manoel de Lima e Silva, o capitão José Afonso Corte Real, o capitão Lucas de Oliveira, e ain¬da outros. Alguns deles querem apenas um regente que lhes dê ouvidos, outros falam fervorosamente numa república e no fim da escravidão. Antônio conta da tal república, e seus olhos brilham, brilho de olhos moços que almejam o futuro. D. Ana pede que ele não nos ensine bo¬bagens. Fala que Bento Gonçalves quer apenas um novo presidente para a província, que reconheça os direitos dos estancieiros e as suas exigências. E isto é que é o certo. O resto são sonhos, diz ela. Fantasias.
Antônio não retruca, baixa os olhos, respeitosamente. Quando er-gue outra vez o rosto, ainda está lá aquele brilho. Eu o percebo como se fosse um halo, um halo dourado que circunda o verde de seus olhos. Talvez as outras não notem, talvez. Minha mãe, sentada numa poltro¬na, borda sua toalha de mesa quase com furor, não gosta desses assun¬tos de guerra e de política. Rosário torna a perguntar da vida pessoal do conde. Antônio responde, brincando: não é uma comadre alcoviteira, não fuça a vida do conde. Fica ele ali fazendo a sua graça, mas eu sei, eu pressinto, Antônio é republicano, gostou desse idílio, luta, no fundo de sua alma, é por isso. Me ponho a pensar se Bento Gonçalves percebe o imenso mecanismo que pôs em movimento quando marchou com suas tropas sobre Porto Alegre, e fico pensando como o coronel pretende dominar este tordilho enfurecido que já corcoveia pelos pampas, nos olhos de meu irmão mais velho, nos olhos de Pedro e de outros tantos espalhados por aí...
Risadas chegam da sala. E eu estou aqui, quieta, escrevendo estas linhas. Para quem? Para que eu as leia, anos mais tarde, e lembre des¬te tempo aqui na Barra, destes dias silenciosos que gastamos esperando à beira do Camaquã? Não sei por que escrevo, mas algo me impele, uma vontade toma meus dedos, empurra a pena para a frente... Fico imaginando como estará o baile... Caetana levou na mala um vestido verde-esmeralda, de seda, decotado e com rendas na saia. Deve estar bela, mais do que é possível imaginar. Bento Gonçalves estará elegan¬te, e sério, e duro, a barba feita com esmero, a camisa de seda branca, o chiripá preso à cintura. Muitas coisas se resolverão neste encontro, ou nenhuma. Amanhã à tardinha saberemos de algo. Amanhã eles retornam. Caetana volta para nós, tio Bento e o conde vêm buscar Antônio e Pedro, estarão de passagem, outros os esperam.
Sim, sempre os homens se vão, para as suas guerras, para as suas lides, para conquistar novas terras, para abrir os túmulos e enterrar os mortos. As mulheres é que ficam, é que aguardam. Nove meses, uma vida inteira. Arrastando os dias feito móveis velhos, as mulheres aguar-dam... Como um muro, é assim que uma mulher do pampa espera pelo seu homem. Que nenhuma tempestade a derrube, que nenhum vento a vergue, o seu homem haverá de necessitar de uma sombra quando voltar para a casa, se voltar para casa... Minha avó Perpétua dizia isso, disse-nos isso muitas vezes ao contar das guerras que meu avô lutara. É a voz dela agora que ecoa nos meus ouvidos.
E lá fora os grilos cantam.
Deve ser bem tarde.

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19

1836
"Minha querida Caetana,
Muito sofri quando o dia trinta e um de dezembro nos pegou separa¬dos, eu tão longe de vosmecê e dos nossos filhos, a família apartada, brin¬dando a chegada deste misterioso ano de 1836 sabe-se lá com que apreensões na alma. Pensei em usted, nas irmãs e nas meninas, todas reu¬nidas na estância, e espero que, mesmo sem nós, tenham feito lauta ceia e brindado para que a sorte nos acompanhe nesta jornada. Pensei em Joa¬quim, Bento e Caetano, no Rio de Janeiro, os três solitos, quando sempre nos reunimos em mesa farta, os irmãos, cunhados e primos, para a noite de final de ano. Porém, minha Caetana, em tudo este ano de 1836 parece ser diverso dos outros, e não o reconheço sem uma certa agonia.
Aqui em Porto Alegre as coisas precipitam-se dia a dia, e a cada novo momento parece mais remota a possibilidade da paz. É por isso que, em vez de tomar do cavalo e ir ver-te como eu gostaria, apenas le envio esta carta, escrita às pressas, à luz do candelabro, nesta modorrenta madruga¬da de janeiro. Faz muito pouco, o conde, sempre cortês e gentil nos seus modos e sentimentos, deixou cá comigo uma poesia que copiou de pró¬prio punho, para que eu a envie junto com esta. Assim é que Tito manda as suas lembranças, minha Caetana.
No início deste janeiro, após muitas confusões ocorridas nas reuniões da Assembléia, o presidente interino desta província, o deputado Marcia¬no Ribeiro, enviou ofício a Araújo Ribeiro, convocando-o a comparecer à Assembléia Legislativa para que tome posse do cargo que é seu. Pois, dias mais tarde, chega-nos a notícia de que o tal Araújo Ribeiro tomara posse em Rio Grande, um insulto que não se pode engolir. E mais, minha cara, sendo que estas são as primeiras coisas que sucederam neste ano, mas não ainda as piores. Meu tocaio, o infame Bento Manuel, finalmente mostrou suas garras: reúne tropas em São Gabriel, para pelejar em nome do imperador, e diz que só obedece às ordens do presidente nomeado pela Corte.
Estamos todos à espera dos fatos, que certamente vêm por aí. Já co¬meçamos a tomar medidas e a fazer reuniões de comando, para o caso de a guerra realmente acontecer. Decidimos, no entanto, não tomar quais¬quer atitudes até a data de quinze de fevereiro, quando então, caso Araú¬jo Ribeiro não volte atrás em seus hediondos atos, começaremos uma guerra em nome desta província e da sua mui honrada gente. Os homens aqui dizem que a guerra tem data certa. Onofre está ansioso por batalhas. Não posso me esquivar a esse fato, no entanto, meu temperamento co¬medido me faz esperar sem sobressaltos nem vãos anseios. Dentro de um mês saberemos o rumo que tudo isto há de tomar.
Cara Caetana, sei que estas notícias que ora le dou hão de deixar in¬quieta a sua alma. Peço que tenha calma, e que rezes por esta terra. É sua a missão de informar estes fatos às outras da casa, mas que não se assus¬tem, nem temam. Os outros estão todos bem, ainda há pouco comemos juntos um gordo churrasco.
E outra coisa, trate junto com Antônia da venda de uma ponta de gado e envie parte desse dinheiro aos meninos, no Rio. Caso seja necessário, quero que eles estejam preparados para voltar ao Rio Grande.
Fique com meu carinho e meu amor,
Bento Gonçalves da Silva
Porto Alegre, 20 de janeiro de 1836."

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20

O final daquele mês de janeiro demorou muito para gastar-se, es-correndo em dias azuis de calor intenso, nos quais o céu mostrava-se impávido, sem nuvens que trouxessem um refresco ou a promessa de chuva. Os primeiros dias de fevereiro vieram carregados de nuvens negras, baixas, o campo perdia-se em nebulosidades ao anoitecer, e uma inquietude ainda maior assolou as mulheres da Estância. A carta de Bento Gonçalves espalhara entre elas uma angústia muda e crescente. Quiseram rever os dias de sol, quando ainda havia a graça dos banhos na sanga, dos passeios de barco com D. Antônia pelas margens do Rio Camaquã, do suco fresco e espumoso que sorviam em grandes goles quando chegavam das cavalgadas, a pele úmida de suor.
Com o tempo feio de fevereiro, um calor ainda mais pegajoso agar-rou-se em tudo. As crianças choravam pelos cantos por qualquer coi¬sa. D. Ana tocava longas horas ao piano para espantar os silêncios cheios de sussurros dos entardeceres sem sol. A negra Xica ficou dias sem leite, mas logo depois, com os cuidados e as simpatias feitas por D. Ana, voltou intacto o seu manancial, e a vozinha chorosa de Ana Joaquina aquietou-se, afogada naquele líquido branco e espumoso que a deleitava e apaziguava.
Marco Antônio e Leão fugiram numa manhã tempestuosa, porque na noite anterior tinham decidido ir em busca do pai e unir-se às suas tropas ainda antes da falada guerra. Não queriam mais restar naquela casa com tantas mulheres medrosas, vendo a mãe rezar horas e horas para a Virgem, pedindo vitórias e zelos, quando tudo o que o general Bento, o grande e forte guerreiro e pai, necessitava eram mais espadas para atacar os imperiais.
Era ainda muito manhãzinha quando os dois escorregaram da cama e vestiram sobre os pijamas um agasalho qualquer. Leão, por ser um ano mais velho, ordenando o silêncio e o cuidado, com medo de que uma das negras que dormia no quarto ao lado fosse alertada pelos ruí-dos. Deslizaram pelos corredores ensombreados e atravessaram a co-zinha na exata hora em que D. Rosa saía do seu quarto, mas não a tempo de ver os dois fujões, que ganharam o pátio correndo e conseguiram driblar a atenção do negro Zé Pedra, que estava sentado num tronco, muito silencioso, esperando o dia raiar para começar o trabalho.
Sumiram no capão. Levaram consigo um pequeno farnel com os restos do lanche da tarde anterior: um pedaço de pão sovado e duas laranjas. Logo, Marco Antônio começou a reclamar de fome, e Leão, no alto dos seus onze anos, proclamou contrariado:
— Um bom soldado não reclama de nada! Tome aí esta laranja. Vendo o irmão menor chupar com gosto a fruta, achou que não havia mal nenhum em se servir também, e foi assim que a tempestade os apanhou: chupando laranjas agachados num canto qualquer.
A água rapidamente começou a formar poças no chão. Os meninos avançavam com dificuldade, pois chovia muito, um manto de água derramava-se do céu, promessa de tantos dias de nuvens negras. Marquito, era assim que Bento o chamava, quis voltar para a casa.
— Podemos procurar os exércitos do pai amanhã — argumentou, parado no lamaçal, os cabelos pretos escorridos de chuva. — Hoje ainda não é o tal dia quinze, Leão... Vamos amanhã, quando estiar...
Leão achou alguma lógica no pedido do outro, mas como não po-dia mais recordar para que lado ficava a casa, e não queria dizer ao irmão desse seu esquecimento, respondeu apenas:
— Eu sou o coronel, Marquito. Vosmecê é apenas um tenente. Eu é que mando, e nós vamos prosseguir. O pai está esperando por nós em algum lugar aí na frente. Vamos!
E os dois foram.
Viriata foi acordar os dois meninos lá pelo meio da manhã, quando as mulheres já tinham tomado o café e estavam na sala, olhando a chu¬va que caía lá fora, Não estranhou ao ver as camas vazias, decerto que tinham ido para outra peça brincar, ou estavam lá para os fundos, in¬comodando as negras na cozinha. Gastou uns quinze minutos procu¬rando os dois por toda parte, nas despensas de compotas, no quarto das meninas, na biblioteca, no quintal e até no curral. Quando entrou na sala e postou-se à frente de Caetana, estava pálida como quem tinha visto alma penada,
— Os menino sumiram — foi o que disse, sem delongas.
D. Ana ergueu-se de um salto e pôs a mão no ombro da cunhada.
— Sumiram como, Viriata? — A voz de Caetana tremia levemente.
— Devem estar por aí, brincando na chuva. Esses meninos têm muita energia... Eu sei, criei dois moleques — interveio D. Ana. — Esteja calma, cunhada. Vou agora mesmo mandar Zé Pedra buscar esses dois aí fora. Vão voltar uns pintos molhados — e saiu para os lados da cozinha.
Zé Pedra e um vaqueano saíram em busca dos meninos. Saíram rindo. Em dias de chuva, era aquilo: viravam de tudo, até babás de guri fujão. A cavalo, percorreram boa parte da estância, foram até a beira do rio, adentraram um tanto no capão. Na sanga, nem sinal dos meninos. Zé Pedra teve a idéia de ir falar com a sinhá Antônia, os guris podiam andar por lá. Mas na Estância do Brejo ninguém tinha visto os filhos de Bento Gonçalves, por ali não tinham passado. D. Antônia fi¬cou preocupada, mandou aprontar a charrete para ir até a casa da irmã.
Zé Pedra, o vaqueano, D. Antônia e o negrinho que a levava che-garam à Barra à uma hora da tarde. As mulheres tinham acabado o almoço, carreteiro de charque, menos Caetana, que a estas alturas es-tava tomada de nervosismo e não conseguira levar o garfo à boca. Continuava chovendo muito.
— Nós olhamos em quase tudo que foi canto, até pros lados do capão, mas os guris não estavam — contou Zé Pedra, molhado de chu-va, chapéu na mão.
D. Ana começou a ficar nervosa. Não bastavam os tantos medos que já tinham, os maridos, os filhos, todos preparando-se para aquela guerra, uma guerra contra o Império, agora acontecia de os meninos tomarem sumiço, e num dia terrível daqueles. Caetana chorava no sofá, amparada por Maria Manuela e por Perpétua. As outras estavam ca-ladas, olhos de angústia. Manuela queria sair a cavalo, em busca dos primos.
— Nada disso — respondeu D. Antônia. — Vamos mandar Ma-nuel e os homens darem revista em tudo quanto for canto. Lá no Bre¬jo, mandei o capataz fazer o mesmo. Ele reuniu uns dez peões e estão procurando Leão e Marquito. Nós vamos esperar aqui, e manter a calma. — Chamou D. Rosa e disse: — Faz um chá de camomila para todas, e tome uma xícara também. A tarde vai ser longa.
As horas vespertinas pareceram se arrastar, prolongadas ao máxi-mo pela chuva que tamborilava no telhado e ia encharcando a varanda, formando grandes poças no jardim, afogando as flores de que D. Ana mais gostava. As quatro moças liam, de cabeça baixa, cada uma com-penetrada no seu romance como se fora das páginas estivesse um abismo de breu — se os primos não aparecessem, o que aconteceria? De quando em quando, uma delas erguia os olhos para a rua. O tempo parecia cristalizar-se, a tarde era um sem-fim daquela mesma luz opa¬ca, daquele céu gris que pairava tão baixo, quase tocando a copa do umbu que ficava em frente à casa. A chuva espantara os pássaros, e um silêncio pegajoso derramava-se sobre tudo.
Maria Manuela, D. Ana e D. Antônia bordavam; Caetana estava à janela; os olhos verdes, perdidos na umidade da rua, estavam úmidos também. De quando em quando, ia ao quarto ver como andavam as meninas: com o sumiço dos dois filhos, o amor pelas pequenas pare¬ceu-lhe que se multiplicava, via nelas belezas novas, era como se tives¬sem desabrochado no espaço daquele dia para ocupar-se da angústia que a assolava. Teve saudades de Bento e sentiu raiva da guerra, que a privava da sua presença e força. Bento já teria achado os filhos, sim, ela tinha certeza.
A tarde, tendo findado tão lentamente, trouxe alento ao anoitecer. A chuva estiou, era agora apenas uma bruma espessa que se grudava em tudo e roubava os contornos das coisas. As moças foram para os quar¬tos, tomar o banho, trocar de roupa para o jantar. D. Ana fazia questão de que tudo seguisse seu ritmo normal. "Quando se perde o tino de uma casa, nada mais está sob controle no mundo", dizia sempre, e repetiu isso, quando mandou as sobrinhas irem preparar-se para a ceia.
Rosário ainda ficou um tanto de tempo fechada no escritório, aque¬les momentos mágicos que davam certa razão aos seus dias, mas na¬quele anoitecer o encontro com o jovem oficial não teve o mesmo gosto das outras vezes. Pensava nos primos, na umidade lá de fora, pensava nas cobras, nos bichos perigosos, nas sombras noturnas. O uruguaio parecia mais difuso, era como se a chuva lhe tivesse roubado o viço das cores, e seus olhos verdes tinham um brilho nebuloso, de céu en¬coberto. Um riso úmido escorria-lhe pelo rosto muito pálido.
— Vosmecê está indo embora, Steban? — preocupou-se. Será que sumiria até a completa desaparição, deixando-a ali, à mercê daqueles dias intermináveis? — Vosmecê não quer mais vir ver-me?
— No es nada de esto, mi querida. — Sua boca moveu-se lenta-mente, como num sonho. — La lluvia me deja así. — No entanto, sa¬bia que a angústia no rosto bonito da moça tinha outra razão. — No estés preocupada. Los hijos del coronel aparecen hoy, yo los vi.
Depois soprou-lhe um beijo que foi rolando pelo ar até tocar seu colo como uma coisa viva. Rosário permaneceu quieta, emocionada com aquele gesto, com o frescor do beijo que ela podia sentir entre as ren¬das do decote. E Steban foi desaparecendo lentamente, era como se mergulhasse para dentro da estante, desfazendo-se entre os livros como uma nuvem que já derramou toda a sua chuva.
Por fim, Rosário ficou sozinha. Quando deixava o escritório, as mãos tocando o colo onde ainda podia sentir a morneza daquele cari¬nho, cruzou com Mariana, que vinha vestida e penteada.
— Os meninos já apareceram? — perguntou. Mariana fez uma cara amuada.
— Ainda não — disse. — Caetana está chorando no quarto, a mãe foi lá ter com ela. Estou indo pedir que Beata lhe traga um chá com bastante açúcar, quem sabe a pobre se acalma...
— Esteja tranqüila, Mariana. Eles aparecem ainda hoje — fa¬lou Rosário, com uma certeza que espantou a irmã. E depois disso, levemente envergonhada, correu para o quarto a fim de fazer sua toalete.
Mariana deu de ombros: Rosário andava esquisita ultimamente.
Zé Pedra, Manuel e os outros peões voltaram para a estância às oito horas sem notícias dos meninos. D. Ana cogitava se era certo en¬viar por um dos homens uma carta a Bento, alertando-o sobre o desa-parecimento dos filhos.
— Esperamos até as dez — disse D. Antônia, decidida. — Se não aparecerem, mandamos Zé Pedra com o bilhete. Por enquanto, deixe¬mos Bento com as dores de cabeça que já tem. — E depois, com voz morna, ajuntou: — Meus homens ainda não chegaram, quem sabe encontram esses dois guris.
Manuela andava por ali, olhando tudo com seus vagos olhos ver-des. A noite escura e úmida a oprimia. O pequeno Regente estava en-colhido em seu colo.
— Largue desse bicho, menina — ordenou D. Ana. — Agora é hora da comida. E não gosto de bichos dentro de casa. Além do mais, esse aí está cheirando a mofo.
Manuela não retrucou a tia. Ela tinha os olhos de Bento Gonçal¬ves, olhos que não gostavam de ser contrariados. Cearam num silên¬cio tristonho. Caetana ficou em seu quarto, sendo cuidada por Zefina. A luz dos candelabros parecia ainda mais lúgubre. D. Ana tinha o ros¬to sisudo, estava rabugenta, era o seu modo de esconder a angústia. Reclamou com as negras, achou a carne dura, a abóbora salgada demais.
— Leve esta abóbora para a cozinha, Beata! E me traga algo que se possa comer... Senão, le sento logo uma surra, que estou pelas ventas.
Beata saiu correndo com a travessa. Quando findava a refeição foi que Neco e Miro Souza chegaram. Vinham empapados de chuva e com as botas cobertas de lama. Mas traziam os dois meninos. Miro Souza, o capataz de D. Antônia, trazia Marquito no colo, desmaiado. Leão vinha cabisbaixo, de mãos dadas com Neco, fungando e chorando bai¬xinho. Sua estréia como coronel fora um fiasco: o tenente caíra numa vala e lá ficara, esparramado, enquanto a chuva derramava-se sobre tudo. Tentara salvá-lo, mas não tinha jeito: a vala era muito funda. Estava já anoitecendo, o pão que tinham levado desmanchara-se sob a chuva, Marco Antônio já cessara de chorar havia muito quando os dois peões os encontraram. Leão ficara feliz como se tivesse vencido a guer¬ra. Mas agora, chegando em casa e antevendo o castigo que receberia, já estava triste. A expedição tinha sido um fracasso.
Foi um alarido. Caetana beijava os dois filhos, acalentava-os, reza-va agradecimentos. Mandou Perpétua acender duas velas para a Vir-gem, tinha prometido. D. Ana examinou os meninos. Leão estava bem, teria uma boa gripe, tomaria uns chás, ficaria uns dias de cama.
— Só não le sento a mão, menino, porque vosmecê está mais mo-lhado do que um pinto — ralhou D. Ana, os olhos fuzilando. — Que¬ria o quê? Matar sua mãe de susto? Já não basta essa guerra nos rondando? Vosmecê sabe que dia horrível tivemos aqui?
— Eu queria ir com meu pai — respondeu Leão, de olhos baixos. Zefina levou-o para um banho quente. D. Antônia examinou Mar¬co Antônio. A testa ardia em febre, e ele dizia coisas incompreensíveis.
— O que tem? Delira? — As lágrimas escorriam pelo rosto boni¬to de Caetana. — Será que quebrou alguma coisa? Será que chama¬mos Bento?
D. Antônia apalpou o menino como fazia com as reses, de olhos fecha¬dos, para sentir bem os ossos. A voz estava calma quando ela respondeu:
— Ele está com bastante febre. Apanhou muita chuva... E acho que quebrou uma costela ou duas. Amanhã chamamos o doutor. Por hoje, vamos aplicar-lhe umas compressas para baixar essa febre. E vamos enfaixá-lo no peito. Dessa ele se safou, Caetana.
No dia seguinte, um médico das redondezas veio ver o filho de Bento Gonçalves e diagnosticou uma pneumonia e duas costelas quebradas. Marco Antônio passou o resto do verão convalescendo. E quando veio a notícia da guerra, ainda estava na cama, com tosse e febre alta. Não sonhava mais em juntar-se ao pai, agora tinha medo do escuro e até da chuva. Leão perdera seu único tenente.

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